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Foto do escritorHanna Pedroza

Quem vai esquecer? e A família - Lisette Lombé

Atualizado: 20 de ago.


Autora de nove livros, Lisette Lombé (1978) é uma artista belgo-congolesa multidisciplinar, cuja atuação abrange poesia, artes cênicas, visuais e educativas. Em suas publicações, a poesia compartilha espaço com fotografias e colagens também de sua autoria, caracterizando a intermidialidade que define seu modo de dizer e se expor. Com grande atuação no movimento de slam poetry na Bélgica e na França, Lombé também é cofundadora do Coletivo L-SLAM e foi premiada, em 2017, como Cidadã Honorária da Cidade de Liège, pela sua abordagem como artista e embaixadora do slam nos quatro cantos da Francofonia . Em 2020, recebeu o Golden Afro Artistic Awards por seu romance Venus Poetica (2020) e o Prix Grenades/RTBF por sua antologia Brûler, Brûler, Brûler (2020). Em 2023, foi selecionada para ocupar o cargo de Poetisa Nacional da Bélgica nos anos de 2024 e 2025.


A arte de Lombé é engajada, desmascara o colonialismo e afirma o poeta como ser social e racializado, sempre evidenciando as marcas da exploração colonial belga no Congo. A própria origem do seu ato poético está profundamente conectada às consequências da colonização, ao legado colonial que perdura na Bélgica, às migrações que o seguiram e às tensões racistas que continuam a moldar o espaço social no século XXI. Sua linguagem combina radicalidade, sensibilidade aguçada e ironia; ela bate onde dói, torce suas entranhas e as costura delicadamente; se atreve a revigorar a expressão verbal e adentra o âmbito íntimo, agitando as fronteiras das convenções sociais. Em toda a sua obra, Lombé confunde o corpo desejante e o político, e cria um espaço de resistência no qual as narrativas subjugadas emergem como forças de transformação.



QUEM VAI ESQUECER?

 

Quem vai esquecer?

Que o negro, chamavam de você...

Não, é claro, como um amigo

Mas porque senhor, respeitoso, era reservado só pros

brancos.

 

Quem vai esquecer?

Eles me disseram

Você é uma bambula! Uma macaca gorda! Uma barata!

Você é suja! Mestiça suja!

Tua mãe dormiu com um negão! Você é uma bastarda!

Eles me disseram

Você tinha que voltar pro teu país! Pra tua savana!

Pro teu barraco!

Você tinha que voltar pra tua árvore! Pro teu cipó! Tuas bananas!

Você tinha que agradecer a Bélgica por te acolher!

Mesmo que tenha nascido aqui…

 

Quem vai esquecer?

Que o negro, chamavam de você...

 

Você vai ter que aprender a seguir teu caminho...

Já tá alugado! Já tá reservado! Já tá lotado!

Você vai ter que aprender a se justificar...

Eu sou belga! Eu sou graduada! Eu sou qualificada!

Você vai ter que aprender uma outra história também.

África, selvagens, subdesenvolvidos.

Te integrar. Te assimilar.

Te enjaular. Te enquadrar.

Te fazer duvidar. Te fazer ter horror.

Te fazer ter vergonha do teu corpo.

Te fazer esquecer teus irmãos e irmãs de cor.

Você, o passarinho exótico, a Josephine Baker,

Gazela-tigresa, a bunda, o rabo!

 

Quem vai esquecer?

Que o negro, chamavam de você...

Que a negra, chamavam de você.

Você

Você pro árabe, pra cigana, pros meus tios, pro meu pai.

Você pros sem documento, pros sem-teto, pros sem emprego.

Você, trabalhadores, trabalhadoras, presos, presas,

Doentes mentais, deficientes, domésticas, jovens favelados,

Você, a tóxica, a puta, a sapatão

Você


Quem vai esquecer?

Quem vai esquecer?


A FAMÍLIA

 

Dizem que, lá,

os poetas estão sempre se espancando,

como uma tijolada na cabeça do inimigo.

Dizem que, lá,

o chão está coberto por milhares e milhares de folhas

brancas, e que cada uma dessas milhares de folhas

brancas pertenceu a uma pessoa abandonada

   pelas palavras.

É uma no man’s land,

uma terra inculta,

uma jazida morta entre as estrofes.

Todos nós conhecemos esse lugar.

Todos nós conhecemos esse medo de não mais estar

   à altura do texto anterior.

Todos nós tememos esse chamado da sincronicidade

   que não se coreografará em nada.

Então, repetimos para nós mesmos,

mantra, mantra,

isso não pode não ter sentido

isso não pode não ser um sinal,

isso não é possível.

E os dias passam.

A gente se alucina, se obstina,

nenhuma linha, nenhuma rima.

Folha branca.

Apneia, falta de ar, apneia, folha branca.

Eu preciso escrever, eu posso escrever, eu quero escrever, eu consigo escrever.

E os dias passam.

A gente se amarga, se agarra à falsa pérola, à falsa pepita,

à cópia falida,

já visto, já lido, já dito,

roupa barata, rima barata, slam barato

E então, de repente...

Aqueles que voltam de lá falam de alinhamento

fulminante ou de renascimento brutal.

De repente, teu poema está ali.

Na tua frente.

Tapete vermelho se desenrolando.

Como se escrito, como se saído, como se jorrado

   de uma outra que não você.

É claro, teu poema ainda precisa ser lapidado,

É claro, teu poema ainda precisa ser domado,

mas ele está ali, na tua frente, soco imóvel,

no meio das milhares e milhares de folhas brancas

que começam a girar, a girar e a girar

   ao redor dele.

É um convite para se render.

É um convite para finalmente ouvir o que teu estômago,

   o que teu ventre, o que tuas entranhas têm pra te dizer...

Então você pergunta em voz alta para essa outra que não é você

“Mas quem são todos esses caras?

Quem são todos esses caras que se espremem

   no meu novo texto?

Quem são todos esses homens?”

Eles saem de toda parte. É uma confusão, uma ebulição.

Eles saem de todos os lugares, é um alvoroço a cada parágrafo.

Hashtag MeToo. Hashtag Denuncie Seu Porco.

Hashtag Hashtag.

Eles saem de todos os cantos.

Tem os brutamontes dos transportes públicos/ coletivos,

os esfregadores, os “Ei, gata!”,

os pegajosos, os dissimulados,

os perdedores, os caçadores,

os não vistos, os não presos.

 

E tem o tio barrigudo, o babá psicótico,

que te persegue de peito nu com um garfo na mão.

Versão trash de esconde-esconde. Se eu te pegar, te empalo.

E o treinador de basquete que te encurrala no vestiário,

Cai cai balão, cai cai balão, aqui na minha mãozinha

E cai a tua meia, e cai a tua calcinha,

material de primeira para uma punhetinha.

 

É a família!

A grande família!

A família sem fronteiras,

acima da lei, acima de você, acima do direito.

Agora você pergunta quantas?

Você pergunta quantas mulheres nessa família?

Você pergunta quantas mães,

   quantas vaginas fedidas?

Você pergunta quantas titias, quantas priminhas

   para cada um desses caras que ficou impune?

Para cada Weinstein, para cada Epstein de

   domingo, cada pseudo DSK, pseudo Woody, pseudo

   Cosby, pseudo R. Kelly, pseudo Koffi, pseudo Polanski,

você pergunta quantas?

Quantas irmãs debaixo dos sorrisos, dos silêncios,

   das conveniências?

Quantas decompostas, corrompidas, desvairadas,

   apodrecidas,

insanas, piradas,

ferradas, fendidas, fodidas,

quantos ventres mortos, fantasmas, culpadas,

   fins de menina, fins de vida?

Quantas?

Me diga quantas!


Textos publicados em Brûler, Brûler, Brûler (2020). Traduções de Hanna Pedroza e Marcelo Jacques de Moraes Performance de Qui Oubliera - Lisette Lombé



Performance de La Famille - Lisette Lombé



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2 Kommentare


Um processo de pesquisa e tradução, sem dúvidas, minucioso e cauteloso, para manter e refletir toda a potência da poesia de Lisette Lombé. Obrigada por esse trabalho tão importante, Hanna.

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Excelente, Hanna! Que a Lisette Lombé se torne cada vez mais conhecida no Brasil por meio da sua pesquisa e das suas traduções!💕

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