Tradução de Renata Villon
Em 1951, Giacometti, de cabeça baixa, tomado por um sentimento de fracasso, uma forte sensação de incapacidade de tocar a realidade, de conhecê-la, de compreendê-la, de apreendê-la (Rimbaud dizia “de envolvê-la”, ou “de abraçá-la”), Giacometti anda na cidade, em Paris, sob a chuva (todos se lembram da impressionante foto de Cartier Bresson¹). Ele diz em seguida: “Eu me senti como um cão. Então eu fiz esta escultura”². E é o escritor Charles Juliet que descreve, bem detalhadamente, em seu pequeno livro sobre Giacometti publicado pela editora Flammarion em 1985, esse cão (essa escultura): “Um cão desnutrido, de flancos esqueléticos, a pele do ventre colada às vértebras, esguias patas franzinas esvaziadas de todo vigor, mas que têm ainda força de avançar, longo pescoço desmedido, longo focinho mergulhante, cabeça sem peso com as orelhas penduradas. Mas esse focinho quase no asfalto, em busca de um rastro, da mesma forma que a longa cauda magra, que não é pendente, e as patas, em posição de marcha, mostram claramente que esse cão faminto não desistiu. Exausto, com as patas trêmulas, ele se arrasta ainda, à procura de alguém ou de um pouco de comida”³. E Juliet conclui: “Espantoso, prodigioso, trágico autorretrato.” Esse cão, o de Giacometti, se parece muito com aqueles que Baudelaire chama de “bons cães” no fim dos Pequenos poemas em prosa, e é bastante evidente que o cão não é menos importante que o gato, animal poético e metafísico, para não dizer místico por excelência, animal com o qual ele pode se identificar, identificar o homem e poeta que ele é, ele que escreve para a mãe (final de 1855) em um contexto epistolar em que, por outro lado, ele se lamenta por viver “engessado” e por dormir “no meio das pulgas”, por ser “atirado de hotel em hotel”, submetido às enxaquecas e febres, desprovido de tudo…: “Eu vivi como um animal feroz, como um cão molhado”. Esse “como um cão”, essa fraternidade animal sob a chuva abundante, é comum aos dois artistas, ambos submetidos à real pobreza (Baudelaire diz “à necessidade”) e, principalmente, no seio dessa necessidade, ao sentimento do caráter “impossível” de sua tarefa, daquela a que eles se sentem idealmente ligados, aquela que eles se atribuíram.
Eu creio poder dizer que esse autorretrato de artista como jovem cão, ou antes como “pobre cão”, “exausto”, mas a caminho, procurando, avançando ao encontro do encontro, foi para mim um desses “condutores” (não acho outra palavra) rumo à decisão de me declarar resolutamente (brutal ingenuidade do propósito…) a favor da PROSA, como se esse cão, esses cães, essa divagação cínica, extenuante e resoluta (Francis Ponge dizia de bom grado “encarniçada”), designasse de maneira persuasiva a necessidade da passagem da poesia, da fabricação harmoniosa, do deleite da “suficiente claridade da harmonia” (é assim que Baudelaire fala em seu Quarto duplo⁴), à prosa, ao partido das prosas, o caráter inelutável do roteiro de perda de auréola, o abandono do “sonho de volúpia”, e a submissão à “enxadada no estômago” e àquilo que ela revela, desnuda, da “realidade”: o “horror” e “desolação” (eu retomo exatamente as palavras dele), da “implacável vida”. Rimbaud chamará isso de “ser atirado ao solo”⁵.
Talvez não seja inútil lembrar que pertenço a uma geração que inicialmente forjou uma ideia da poesia (da “feitiçaria verbal evocatória”) e do discurso legítimo e pertinente sobre a poesia, a linguagem poética, a formalidade poética, a “função poética” da linguagem, a partir da leitura do artigo de Claude Lévi-Strauss e Roman Jakobson sobre Os gatos e da literatura teórica e polêmica que daí decorreu⁶. Parece que, desde então (é um artigo de Ross Chambers, de 1984, que me ensina isso), a crítica baudelairiana teria operado uma séria transferência de atenção dos Gatos para o Cisne (o dos Quadros parisienses⁷). De minha parte, saltando por sobre o Albatroz (demasiadamente “vasto” e caricatural), os Mochos (demasiadamente meditativos e imóveis, bem próximos dos Gatos aos quais, aliás, sucedem imediatamente na ordenação da primeira sequência da coletânea), saltando também por sobre o Cisne, demasiadamente branco e “infeliz”, demasiadamente “ridículo e sublime”, transferi minha curiosidade e minha capacidade de adesão dos gatos para os cães, essa translação implicando na transferência de atenção e envolvimento da coletânea de versos (predominantemente harmônica e contemplativa, contra todas as potências negativas e entrópicas, apesar de todos os sinais de erosão e da doença que atacavam a linha melódica e minavam todas as posturas ascensionais) para a coletânea de prosas (dominadas, essas, pela dissonância e pela deambulação), de As Flores do mal para O Spleen de Paris. É sensivelmente o mesmo procedimento que, num primeiro tempo, me havia aproximado de Tristan Corbière: sua desfiguração agressiva e transgressiva da musicalidade métrica-prosódica e o fato de ter eleito como figura de identificação decisiva o Sapo, designado no soneto invertido que Corbière dedicou a ele como “rouxinol da lama”⁸. Sapo contra rouxinol, cão contra gato, essas serão para mim maneiras simples de conceber um trajeto, um percurso, um movimento específico, o da renúncia de um certo tipo de poesia ao canto, aos “encantos”, aos benefícios e gozos da eufonia, eufórica ou disfórica, aos prazeres próprios da modernidade spleenética, aos efeitos do “fascínio” e do “prazer” de um verso que, apesar dos “uivos” ensurdecedores da rua, apesar do “caos” da cidade, não cessa de cantar e de encantar, de “erguer” e de “balançar” (como faz a Passante com as dobras de seu vestido), e de transfigurar o mal e a dor e a angústia e a infelicidade incuráveis.
Eu retorno aos gatos por um instante, eles que povoam As Flores do mal. Inicialmente, quer se trate do gato 34, se ouso chamá-lo assim, ou do gato 51 (trata-se da posição dos poemas na coletânea), o gato se apresenta desde a primeira estrofe desses dois poemas paramentado com o mesmo qualificativo: “belo”:
Vem, meu belo gato, no meu coração [...] (34)⁹
No meu cérebro passeia
Como em seu apartamento
Um belo gato […] (51)¹º
Externo ou interno, no coração ou no cérebro, implicado no caso afetivo-erótico ou no caso poético-espiritual, o gato é inicialmente figura da beleza, beleza objeto de desejo, beleza cujo olhar “abre a porta de um infinito”, desejado e desconhecido; beleza então perigosa ou gratificante, que fere ou apazigua, metálica-mineral (aos olhos “mesclados” “de metal e de ágata”) ou voluptuosa, “elástica”.
O corpo do gato 51 é apenas um suporte, ele se reduz rapidamente à sua voz, depois ao seu perfume, vetores de “êxtases”, que enchem, tocam, satisfazem, agindo como faz o verso, a poesia “numerosa”, uma língua desconhecida contada-rimada, pura música aquém das palavras, propriamente “mágica” ou ainda “angelical”. Da mesma forma que “os chineses veem as horas no olho dos gatos” (O Relógio, nos Pequenos poemas em prosa), o poeta vê a beleza ao se abismar nos “belos olhos” do “belo gato” (34) ou, voltando seu olhar para si mesmo, na contemplação interior do estranho olhar do “estranho gato” (51) que também o contempla e o fixa.
Beleza, estranheza, enigma, imobilidade, silêncio, vidência, acesso ao desconhecido, o gato, o “belo gato” das Flores do mal emblematiza, na melhor das hipóteses, os poderes e virtudes da Poesia e do Poema, os poderes da voz silenciosa, da voz do escrito em poema, do escrito “numeroso”, como diz Baudelaire.
Mas há um gato nas Flores cujo corpo não pertence, ou não pertence mais, à ordem das esfinges, é aquele do primeiro Spleen (75), que se inscreve previamente no quadro parisiense, na paisagem dos poemas em prosa, da prosa urbana spleenética: frio, bruma, cemitério, subúrbio. O corpo desse gato (que não é mais um “belo” gato, e sim, como os cães das prosas, um “bom” ou um “pobre” gato), esse corpo é descrito como “magro e sarnento”, e se agita “no ladrilho, em busca de um leito”. É um errante, um faminto. Ele se assemelha (a segunda estrofe do soneto produz essa proximidade e essa superposição) a um “velho poeta”:
A alma de um velho poeta erra pela goteira,
Com a triste voz de um fantasma friorento (72)¹¹
Exatamente aquele que será evocado no fim da prosa dedicada ao Velho saltimbanco, o “velho poeta”, “sem amigo, sem família”, deteriorado por sua miséria, etc. Há então poetas de goteira assim como há rubricas dedicadas aos “cães atropelados” nos jornais, ou, como se dizia no século XIX, aos “cães perdidos”. E talvez haja, nessa coexistência do belo gato e do bom gato na mesma coletânea, uma figura de tensão, designando a necessidade do dispositivo. Assim como Francis Ponge nos pedia para considerar o dispositivo Maldoror-Poesias (Os cantos de Maldoror/ Poesias¹²), devemos considerar o dispositivo Flores do mal- Pequenos poemas em prosa. O próprio Baudelaire fala de “contraparte”: os dois livros se respondem e se completam. Confrontando, num prefácio, os poemas em prosa de Baudelaire às Iluminações de Rimbaud, Jean-Luc Steinmetz ressalta o rigor do partido prosaico, prosaísta, em Baudelaire. Ali onde Rimbaud visiona e oniriza ou desmesura, Baudelaire se entrega a uma “autópsia”. “Raras são as rotas de fuga que ele propõe”. “Nenhum aviso. O rebaixamento que o prosaísmo convoca, a curiosidade descamante, a ausência de esperança”¹³. Em suma, do lado de Baudelaire, o que Flaubert designa (em sua Correspondência) como uma “prosa muito prosa”¹⁴, o que eu procuro designar como contramodelo do “poema em prosa” stricto sensu ou da prosa em poema, sob a categoria de “prosa em prosa(s)”, a recusa de toda forma de sublimação estilística, de toda re-poetização idealizante. Nesse sentido, os Pequenos Poemas em Prosa são uma boa contraparte alternativa às Flores do mal e, sem dúvida, apesar de uma tradição modernista insistente e poderosa, evidentemente mantida pela ideologia surrealista e suas sequelas, fornecem um modelo de escrita bem mais próximo do que esperamos hoje em dia de uma escrita crítica e objetiva, “objetivante”, depois da “poesia”. Mesmo que seja claro que Baudelaire não podia pensar nesses termos (nos de uma ultrapassagem da poesia, da possibilidade de uma pós-poesia), ele é um desses escritores que nos convidam a buscar as formas de uma “prosa particular”, “musical sem ritmo e sem rima”, ou seja, que dizem respeito a uma música paradoxal, a uma outra música, essencialmente ligada às novas formas de sensibilidade e de consciência geradas pelas condições concretas da vida material nas novas aglomerações urbanas.
É obviamente disso que fala o poema conclusivo da coletânea póstuma, Os bons cães. Eles, que são os grandes ausentes do bestiário alegórico ou realista das Flores do mal, substituem o gato “magro e sarnento” do primeiro Spleen e se apresentam sob a insígnia da “ruptura com a musa lírica”:
“Para trás, Musa acadêmica! De nada me serve esta velha melindrosa. Invoco a musa familiar, a citadina, a viva, para que ela me ajude a cantar os bons cães, os pobres cães, os cães enlameados, aqueles que todos evitam como pestíferos e piolhentos, exceto os pobres, de quem são os sócios, e o poeta, que os olha fraternalmente”¹⁵. Declaração fundamental sobre a aliança fraternal entre os pobres, os “sem domicílio fixo”, os cães errantes e os poetas. Eles se juntam à trupe dos gatos de goteira. “Eu canto os cães calamitosos, os que erram, solitários, nas ravinas sinuosas das cidades imensas”¹⁶. Eu sei bem, de um saber de história literária, que a posição desse poema na coletânea póstuma não é em nada significativa, a princípio; a coletânea é teoricamente incompleta, não possuindo, portanto, um “último texto”, e sua estrutura prevista é explicitamente caleidoscópica, não linear, não logicamente ou narrativamente articulada; contudo, foi assim que ela nos foi transmitida, que nós a exercemos e, no que me diz respeito, não considero indiferente que ela progrida das “maravilhosas nuvens” e da postulação de uma beleza “imortal” (traço de união com As Flores do mal, para um poeta que puxa para o alto, para o céu azul, para além, etc…), até o “atirado ao solo”, até as sinuosas ravinas da circulação urbana, até uma questão (“para onde vão os cães?”) recopiada no folhetim de um jornal, ocupando, se quisermos, o lugar da prosa mais rasa, mais trivial. Aconteceu-me de querer retomar essa questão, “onde vão os cães?”, como título de um artigo (reproduzido aqui mesmo) dado à revista Littérature em 1998 para um número intitulado “Sobre a poesia atual, canteiros, trilhas”¹⁷. Evocando de saída as ravinas, eu começava reformulando a questão: “No extremo fim do século XX, entre muros cada vez mais altos, falésias a pique e nós no fundo. Será que se trata de re-encantar o mundo?” Pareceu-me que a resposta era: não. Os cães “buscam sua vida”, diz Baudelaire. Deitam-se nas ruínas dos subúrbios. Eles não vão a lugar algum, eles vão. A poesia, no sentido em que ainda escutam aqueles que vão para algum lugar, ou que pensam saber para onde vão e para onde se deve ir, e de que maneira, não tem mais valor, não tem mais razão de ser, não permite mais que se compreenda ou que se alcance o que quer que seja. É um dos motivos que a tornam “inadmissível” (termo de Denis Roche que serve também de título — A poesia é inadmissível — ao conjunto de sua obra poética definitivamente interrompida em 1972¹⁸). Daí a urgente necessidade de renunciar à salmodia, aos sortilégios da diérese, ao calor do acalanto isossilábico, ou da câmara estrófica, da câmara do eco estrófico, ou do universo saturado das correspondências. E de inventar as novas formas da prosa, de prosas realmente críticas e realistas, realeiras, documentais, alíricas, até mesmo deliberadamente, como sugere Jean-Luc Steinmetz a respeito do Spleen de Paris, deliberadamente antilíricas. Baudelaire, de certa forma, contra Baudelaire.
Foi exatamente nesse espírito que, em 1999, no ano seguinte à retomada da questão “Onde vão os cães?”, ou os poetas, cães de ravinas e gatos de goteira, dei como título ao que penso ser uma tentativa de “prosa em prosa” depois da poesia o segundo hemistíquio deste verso de Victor Hugo em “Resposta a um ato de acusação” (o célebre poema metapoético das Contemplações): “Lancei o verso nobre aos cães negros da prosa”¹⁹. Os cães negros da prosa, então. Certamente se tratava, para Victor Hugo, de reformular, colocando-a à distância, a acusação de ter arruinado a poesia, de tê-la dado aos cães devoradores e selvagens da prosa. De fato, a acusação se justificava em parte. Victor Hugo, que com certeza nunca abandonou o verso, que era mesmo o verso em pessoa, de fato contribuiu para a prosaização do alexandrino, para seu deslocamento decisivo, para seu desaparecimento na goela do cão. Os cães negros da prosa são, para mim, os primos dos bons e pobres cães de Baudelaire, ou do cão faminto de Giacometti. Eles testemunham uma saída formal para fora do molde e do carrossel. Do esforço da poesia contra si mesma.
Curiosamente, é citando Baudelaire de maneira equivocada que Claudel define sem dúvida muito bem o que distingue a “poesia” de depois (aquela de depois da poesia, que podemos também parar de chamar de poesia se quisermos) da poesia de antes, a das flores, ainda que fossem do mal:
“O objetivo da poesia, escreve Claudel em sua Introdução a um poema sobre Dante²º, não é, como diz Baudelaire, o de mergulhar no fundo do Infinito para encontrar o novo (na verdade Baudelaire não escreve “no fundo do Infinito” mas sim “no fundo do Desconhecido”), mas sim no fundo do definido para ali encontrar o inesgotável”. Aí está o ponto e, sem dúvida, o projeto da prosa, de uma certa prosa literal de investigação ou de elucidação realeira, de uma certa prosa documental e disposital: o definido, o inesgotável.
Todo o valor de uso, para nós, de Baudelaire, está aí: no forte sentido que atribuímos a esse gesto de passagem do canto das flores à deambulação das prosas, à procura de uma língua poética pós-poética, à elaboração de uma prosa que de alguma forma desperte, no primeiro quarto, o quarto real, na crueldade do quarto real ou em sua cor cinza, em seu preto e branco frontal. Mas também, ainda, na preocupação com uma poética do “detrito” e do “dejeto” (retomo as palavras dele), e com a montagem, o encaixe, dos fragmentos recolhidos. Releio agora esta passagem fundamental de Do vinho e do haxixe, na qual Baudelaire descreve o poeta como um trapeiro: “Eis um homem encarregado de recolher os dejetos de um dia da capital. Tudo o que a grande cidade rejeitou, tudo o que ela perdeu, tudo o que ela desdenhou, tudo o que ela quebrou, ele cataloga, coleciona. Ele compulsa os arquivos da devassidão, o cafarnaum dos detritos”²¹. Procedimento que podemos considerar, em parte, compulsivo (dessa vez deturpo um pouco o sentido do verbo “compulsar”), e em parte de precisa composição, mas que implica, de todo modo, ao menos imagino assim, um desaparecimento progressivo da instância autoral, da grande figura histórica do Exilado ou do Maldito (O Albatroz), em proveito das próprias coisas (os “arquivos”, o dado bruto objetivo, o material) e de suas combinações (é por isso que se deve falar de escrita documental e disposital). O primeiro “trapeiro”, ou pós-poeta consequente que conheço é Francis Ponge, que recolheu, entre outras coisas insignificantes, em uma rua do bairro de Halles em Paris, um caixote²². Mas sucederam a ele outros desses compulsivos do dispositivo: enquadramento e montagem de um material ready-made, “prosa particular” de coleta e de reciclagem, entre nova escansão a ser inventada (fora do verso) e neutralidade-platitude atonal (“altitude zero”). A prática da poesia como exposição, prosa posta, sem pose, expositora. É exatamente o Denis Roche dos Depósitos de saber e de técnica, ou ainda o Dominique Fourcade do Sujeito monotipo²³, que declara o engolimento do verso pela prosa e o abandono da unidade poema pela unidade página, o espaço livre, all over, como na pintura americana, não paginado (“é o não paginado que se escuta,” diz ele em algum lugar), seja então uma “prosa-clique”, e nos lembramos que seu primeiro grande livro se intitulava Rosa clique, onde se voltava a encontrar a flor emblemática da poesia, mas desencapada: “Eu exponho as coisas, eu coloco a vida ao rés do chão, sem comentário.”²⁴
Trata-se claramente, depois da escolha do poema em prosa contra o poema em versos (o que foi explicitamente, por exemplo, a primeira estratégia de Francis Ponge em um primeiro momento: escrever pequenos poemas em prosa objetivistas: O Partido das coisas), de explorar os caminhos da prosa em prosa depois do poema em prosa (que foi o segundo momento da trajetória pongiana com a publicação de seus rascunhos, cadernos, dossiês abertos, estritamente ditos pós-genéricos ou pondo em jogo uma prosa altergenérica). Portanto, no sentido talvez de se alçar como ultrabaudelairianos, baudelairianos radicais. De efetuar o deslocamento com um passo suplementar, e de promover esse deslocamento, de facilitá-lo, de lhe dar lugar, um lugar, lugares; é para isso que queria contribuir, por exemplo, a criação da revista Nioques em 1990.
Meu último comentário diz respeito ao fato muito previsível que, apesar da aura consensual relativa à modernidade de As Flores do mal e de seu papel comprovado como limiar da modernidade e matriz, direta ou indireta, de Pierre-Jean Jouve a Yves Bonnefoy ou a André du Bouchet, é claro que a geração jovem (a que emerge por volta do meio e do fim dos anos 1980 e se manifesta na década seguinte) dificilmente poderia se referir a uma poesia da qual aprecia o caráter oximórico, tensionado, dissonante ao mesmo tempo que consonante, paroxístico, formalmente acabado, etc., mas da qual também não deixa de perceber que o próprio Baudelaire trabalhou para desarmá-la, deliricizá-la, neutralizá-la, “rebaixá-la” de certo modo. Em 1998, um deles, Christophe Hanna, publicou nas edições Al Dante (na coleção Nioques que acompanhava a revista que havia sido feita para isso) um livro intitulado, precisamente, Pequenos Poemas em prosa, e cujo índice propunha um percurso de 50 etapas, de O estrangeiro a Os bons cães. Tratava-se então de uma clonagem de um tipo um pouco particular que, em todo caso, presta uma homenagem espetacular ao nosso prosador experimental. Outro desses jovens escritores em ruptura de poesia, Nathalie Quintane, produziu uma descrição bastante precisa desse trabalho, e cito-a de forma um pouco extensa porque ela diz muito bem o que está em jogo nessa prosa nova e no dispositivo citacional que a constitui:
“Sob fachada baudelairiana, Hanna repete o que sabemos: não é mais para empurrar a poesia para dentro do fosso. Ela já está lá, talvez desde Baudelaire, certamente desde Lautréamont. A ideia ou a reformulação poética do mundo não estão mais na ordem do dia. Hanna retoma por conta própria a asserção das Poesias (de Ducasse): o objetivo, o desafio do trabalho poético é a “verdade prática”. À enumeração ducassiana sucede um dispositivo essencialmente analítico, decodificação do mundo por seus discursos, tudo isso exibido, reiterado, validado pela paginação que mantém o meio entre tabloides e vestígios [Michel Deguy diria “relíquias”] das formalidades vanguardistas (poesia visual engajada dos anos 1960, desvios situacionistas). Na linha de Ducasse e do Baudelaire dos Pequenos Poemas em Prosa, Hanna coleta. Ele coletará o que nos fura os olhos, em todos os sentidos do termo: a produção ininterrupta (imagens e textos, ou “prosas”) das sociedades de controle (aquelas nas quais vivemos) via a interface midiática. Contornados e recortados na página, aparecem faits divers conhecidos, ou antes seus relatos lidos na imprensa, ou ainda a lembrança que deles conservou o autor (o “redator”) das reportagens vistas na televisão (como a execução dos Ceaucescu, por exemplo). Em todos os casos o enunciado destaca a roteirização desses faits divers cuja relação é invariavelmente calcada em algumas constantes narrativas. Nesse livro encontraremos igualmente, entre outras coisas, pequenos anúncios sexuais mostrados continuamente para realçar a característica repetitiva dos roteiros, a homogeneidade do léxico, a monotonia do conjunto. Esse “material” de base com o qual o livro se constrói não cessa de dizer o retorno do mesmo e o enlace de vidas que parecem identicamente prosaicas, banais, automatizadas”.
O mecanismo tal como descrito por Nathalie Quintane concerne exatamente àquilo que eu chamava de um baudelairianismo radical. No livro de Hanna, o real é a imagem do real, a realidade é telerreal, não circulamos mais “nas ravinas sinuosas das cidades imensas”, mas sim cercados de telas. O próprio cão se afasta, desaparece. Devemos trabalhar com, sobre e contra essa midiatização do real, sobre, com e contra os formatos que ela propõe e os modos de comunicação que ela constrói. É a tarefa pós-poética, e talvez política também. Muitos desses jovens poetas de que estou falando reintroduzem em suas práticas, ou na forma como representam essa prática, um componente “político” do qual estavam afastados por reação, pregando posturas desprendidas, irônicas, contra as formas de engajamento diretas, moralizantes, dogmáticas de seus antecessores vanguardistas dos anos 1960-1970. O motivo da resistência volta, então, especialmente sob a forma do tratamento crítico das línguas da informação (como é o caso nas prosas de C. Hanna). Nessas condições, de fato, a “poesia”, como se preocupa Michel Deguy, sai de seu leito. Essa saída, a meu ver, não é um perigo, mas sim uma chance. Que a poesia, ou aquilo que a sucede, não se reduza mais à produção de objetos “poemas” (afivelados, acabados, munidos de sua cláusula), que esses novos objetos sejam impuros e mistos, e não mais apenas objetos “em língua materna vernácula”, que aquilo de que tratam não diga mais respeito à experiência singular de um indivíduo mas sim a nossas práticas coletivas, que a poesia renuncie a mostrar o exemplo de um sublime moderno nos “dark times” em que vivemos, tudo isso deve ser considerado sem receio particular. Por meio de uma palavra, direi que não acredito que se deva operar (como alguns nos convidam a fazer) um “retorno a Baudelaire”, para nossa salvação e de nossos contemporâneos, mas que se deve, sem dúvida, como Christophe Hanna faz muito bem, acompanhar Baudelaire no ultrapassamento de Baudelaire. Em direção a novas formas de expressão que nos permitam verdadeiramente resistir às pressões da época.
Mas sei que ao mesmo tempo sempre existirão gatos. E não lhes desejo nenhum mal, como se pode imaginar.
“Les chiens s’approchent, et s’éloignent”. Texto publicado em Alea. Vol. 9, no 2, 2008: 165-175.
Veja o texto online original aqui.
A tradução foi autorizada pelo autor Jean-Marie Gleize, a quem admiro e agradeço.
Refere-se à foto de Alberto Giacometti tirada por Henri Cartier-Bresson, em 1961, na Rue d’Alésia em Paris. (NDT)
A escultura “Le Chien”, de 1951. (NDT)
Na biografia intitulada Giacometti (1985), o escritor Charles Juliet fala sobre as obras do escultor suíço e sobre o momento, capturado pelo fotógrafo Cartier Bresson, em que o artista andava sob a chuva abundante. (NDT).
O quinto poema em prosa da coletânea O Spleen de Paris ou Pequenos poemas em prosa (1869). (NDT).
No poema “Adeus”, de Uma temporada no inferno (1983), Arthur Rimbaud fala nesses termos. (NDT).
O ensaio referido foi originalmente publicado em 1962 pela revista L’Homme, Vol. 2, no. 1, sob o nome “‘Les Chats’, de Charles Baudelaire”. (NDT)
O autor refere-se à segunda parte de As Flores do mal, em que Baudelaire fala sobre a cidade e certas figuras observáveis nela. O cisne, presente nesses quadros parisienses, é então um dos muitos animais a que Baudelaire se referiu em sua obra. (NDT)
Esse poema de Tristan Corbière foi retirado do livro Les Amours jaunes, publicado originalmente em 1873 pela editora Glady frères. (NDT)
“Viens, mon beau chat, dans mon cœur [...]”. BAUDELAIRE, Charles. Les Fleurs du mal. Œuvres complètes. 2 vol. Texte établi, présenté et annoté par Claude Pichois. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 1975: I, 35.
“Dans ma cervelle se promène / Ainsi qu’en son appartement / Un beau chat […]”. Idem: 50-51.
“L’âme d’un vieux poète erre dans la gouttière / Avec la triste voix d’un fantôme frileux”. Idem: 72.
Refere-se aos dois livros de Isidore Lucien Ducasse (dito Comte de Lautréamont), contemporâneo de Baudelaire, e suas diferenças temáticas e estruturais. (NDT).
O prefácio aqui referido se trata, aparentemente, do que se encontra na edição de 1972 de Les Paradis artificiels, de Baudelaire, publicado pela Librairie générale française. (NDT)
O autor fala sobre o tema em diversas cartas destinadas a Louise Collet; a referida pelo autor é datada de 27 de março de 1853. (NDT)
“Arrière, Muse académique! Je n’ai que faire de cette vieille bégueule. J’invoque la Muse familière, la citadine, la vivante, pour qu’elle m’aide à chanter les bons chiens, les pauvres chiens, les chiens crottés, ceux-là que chacun écarte comme pestiférés et pouilleux, excepté les pauvres, dont ils sont les associés, et le poète, qui les regarde d’un oeil fraternel". BAUDELAIRE, Charles. “Pétits poèmes en prose”. In: Œuvres complètes de Charles Baudelaire. Paris: Michel Lévy frères, 1869.
“Je chante, les chiens calamiteux, ceux qui errent, solitaires, dans les ravines sinueuses des immenses villes”. Idem.
Título original: "De la poésie aujourd’hui, chantiers, sentiers". (NDT)
Em 1995 a editora Seuil, Fictions & Cie publicou toda a obra poética do escritor Denis Roche, que havia cessado de escrever poesia em 1972. O título remonta o conjunto de poemas intitulado “La poésie est inadmissible, d’ailleurs elle n’existe pas” [A poesia e inadmissível e, no mais, não existe]. (NDT).
Ao combater o classicismo, Victor Hugo foi acusado de ser o “devastador do antigo A B C D”, o que resultou nessa resposta em versos às acusações feitas contra sua pessoa, publicada em 1834. (NDT).
Positions et Propositions. Paris: Gallimard, 1942.
“Voici un homme chargé de ramasser les débris d’une journée de la capitale. Tout ce que la grande cité a rejeté, tout ce qu’elle a perdu, tout ce qu’elle a dédaigné, tout ce qu’elle a brisé, il le catalogue, il le collectionne. Il compulse les archives de la débauche, le capharnaüm des rebuts”.
Refere-se ao poema em prosa do livro Le Parti pris des choses, de Francis Ponge, nomeado “Cageot”, em que o poeta se refere à língua como possuidora de um caixote. (NDT).
Ambos os textos, respectivamente de 1980 e 1997, procuram pensar e questionar os diferentes gêneros literários. (NDT).
“J’étale les choses, je mets la vie à plat, sans commentaire". Livro de Dominique Fourcade, publicado pela editora P.O.L em 1984. (NDT).
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