Traduzido em oficina oferecida pelo Núcleo de Tradução do Laboratório da Palavra, coordenada por Marcelo Jacques de Moraes.
O ar fica líquido, escorre entre os meus dedos como uma água espessa e bem clara. Me enfio numa imobilidade de vegetal, tesa. Plantada numa calçada que domina o Bulevar periférico de Paris, inaugurada pela minha raça de olhos redondos nos anos setenta. Perco a noção do tempo. Seis mil milhares de milhões de milhões de células de rodinhas, inflamadas, correm rumo a suas casinhas de subúrbio. A noite se assenta por trás dos edifícios vermelhos. Um veneno me ressuma do coração. Um cheiro imundo de língua cortada. Está chovendo. Meu corpo está frio, ouço estalar minha pele. Quero me lançar a nado na lama quente, tumultuada e branca das migrações humanas. Não consigo mais ficar sem essa humanidade sobre rodas. Sem parar, diante das minhas pálpebras fechadas, corre essa torrente epilética de tripas e entranhas, fétidas e envergonhadas. Volto aqui todo dia. Durmo num banco. Não posso mais ir para casa. Então durmo num banco. Fica num parque tranquilo, sem perigo, é verão. Não estou com muito frio. Decidi não voltar para casa, porque o grau de abstração ali se tornou tal que prefiro me drogar todos os dias com gasolina, imóvel diante do mar de carro velho. Uma manhã, plantada acima da goela do bulevar, minha mandíbula se abre numa palavra silenciosa. Um rebento de puta inconcebível, luminoso. Minha boca está escancarada, como uma ferida que não fecha. Os passantes se afastam de mim. Essa palavra é a forma de Tudo. Ela me solda ao mundo. Não para de me escavar. Quero cuspi-la em cima da grande tripa e sua comovente, grandiosa mentalidade de autoestrada. Não sinto nada em mim. Não sinto nada mas minha mandíbula me dói. Respiro com dificuldade. Um animal pesado se alojou sob o meu tórax, bem embaixo da minha clavícula. Suas presas laceram meu diafragma e esmagam minha laringe. Quando ele se mexe e muda de posição, o rebento de puta na minha boca, sacudida de espasmos, secreta uma saliva excessiva. O uivo se acentua no meu crânio e fica tão insuportável que, sedenta de sons, de qualquer som (penso em rangidos de pequenos objetos complicados, em ganidos de manequins de propaganda, em latidos de vidas lucrativas sem entranhas, qualquer som que esmagasse o rebento de puta na minha garganta, no limite do vômito, porque é exatamente o que desejo: vomitar, vomitar esse filho da puta) eu tiro o telefone do bolso e procuro febrilmente nos meus contatos um recipiente maleável e sem imaginação, que poderia me preencher com um cacarejo. Não entendo mais nada. A lista de contatos fica embaçada. Jogo o telefone longe. Perco o equilíbrio. Caio. Tento me inclinar dezenas de vezes para a direita, mas não paro de quicar para trás. Levanto de novo. Como que uma coisa grave, como que uma coisa grave, não distingo absolutamente nada, não sabendo o que fazer, morta com em cheio nos olhos, como que uma coisa grave, me levanto como um nevoeiro bem devagar e nada aparece, morta com em cheio nos olhos totalmente loucos fim de festa, travou, fudeu, como que uma coisa grave, com essa consciência de uma batalha bem na minha cara, a batalha do terror, o terror do imperceptível, o imperceptível deslocamento, o deslocamento da verdade, a verdade que se esquiva, a verdade oficial morta com em cheio nos olhos a macaquice, como que uma coisa grave eu fico de pé, morta com em cheio nos olhos a má consciência, um pouco de fôlego, o peito a cabeça na boca contra o ombro a mão na garganta o grotesco, volto a viver, isso me leva violentamente de volta ao chão, estou louca, vou ficar ali, não consigo ficar parada e só piora com o tempo, esse desamparo febril, ansioso, que abre fogo ou solta uivos de dor como que uma coisa grave, como que uma coisa grave levada por uma loucura súbita. Os miolos me escorrem pelo nariz. Como que uma coisa grave, me esgoelo várias vezes, morta com em cheio nos olhos cada corpo clac, rosto toc, palavra claudicante soasse, alegria nas costas, pata muda, injustiça doente na própria cruz, punho evidente, arrepio, cada mulher e cada mãe, cada trem, cada dia, cada merda. Eu cuspo marimbondos e bato com a cabeça no parapeito morno, morta com em cheio nos olhos mortos meus olhos cheios da cabeça aos pés, fiz viagem completa. Isso não vai cessar nunca, essa distância, o ar, o horizonte vazio, é exasperante. Então não falo mais. Menos. Mais nada. Um silêncio, de uma precisão de máquina.
Fragmento de Naissance de la gueule (Al Dante, 2015).
Anne-Claire Hello, ou simplesmente A.C. Hello, escreve, desenha e pinta, mas, acima de tudo, performa e lê seus textos em voz alta. Entre seus livros estão Naissance de la gueule (2015) e Koma Kapital (2021).
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