Tradução de Érica Ignácio da Costa e Isadora Bonfim Nuto.
Dissolução memória identidade estrutura
Não sei se foi a partir de um dia preciso, se foi durante vários dias ou vários meses, acho que era inverno, mas nada é menos certo, eu voltava lentamente a ficar de pé, eu chamava minha mãe, talvez fosse verão, as pessoas fugiam, se jogavam umas sobre as outras depois muitas se afogavam, antes que eu pudesse entender o motivo de seu enorme rebuliço, um verão assim demolido por uma realidade terrível, aliás nem era verão, eram mais resquícios de verão que dispersavam furiosamente o seu cheiro de verdura e podridão entre os céus e as paredes, fiquei outra vez de pé entre as papoulas e tílias, mesmo que mais provavelmente fosse apenas uma grama amarela coberta de sujeira, e eu estava convencida de que cometia um erro ao ficar assim de pé sob esse céu certamente de outono, provavelmente era outono, minha cabeça rodava entre as folhinhas pontudas, o vento me violentava sob o céu azul, eu me enojava da carne, isso certamente aconteceu naquela rua lamacenta onde tinham me jogado, aquela rua ladeada por uns caras grandes e lívidos cujo nome já não lembro, caras que sonhavam com vitória e aniquilação, frequentemente não tinha ninguém, muito frequentemente não tinha ninguém agora que me lembro e também frequentemente eu chamava minha mãe, mas naquela época, em todas as épocas na verdade, até mesmo por muitas décadas, minha mãe achava que eu estava morta, ela sobrevoava freneticamente a cidade, as pernas recolhidas e o estômago vazio, morta e finalmente feliz entre os repolhos brancos, então evidentemente aconteceu entre o verão e o outono, sob um céu claro e alegre esmagado por nuvens vermelhas, havia meses que eu passeava minha sede sob esse céu vermelho fritando meu crânio, eu caía no sono e me largava ali, até esse dia em que eu ficava de pé outra vez, talvez tenha sido nos anos dois mil, mas poderia muito bem ser nos anos noventa, talvez até mesmo tenha sido ontem, eu estava muito calma, olhava minhas mãos e encarando a derrota com esse nó de palmas esticado eu me recompunha, com medo de olhar o horizonte imenso. Eu me encontrava em uma sala branca, provavelmente um quarto de hospital. Ou uma sala de espera. Eu nunca soube com certeza quem me viu por último, fora alguns mortos e um ninho de enfermeiras rígidas, agitadas com tiques nervosos e arrepios, e tudo isso, eu acho, não durou mais que um segundo, um segundo que durou vários dias ou vários meses, eu acho que era inverno, eu acordava aos pés da tua cama enquanto você se decompunha e se recompunha, suspenso entre a cama e o teto, ao mesmo tempo que continuava rigorosamente imóvel, colado à superfície plana dos lençóis, enquanto você, mantido em equilíbrio por uma corrente de ar, cerrava os dentes e se projetava em um ângulo da sala, ao mesmo tempo que continuava rigorosamente imóvel, colado à superfície plana dos lençóis, enquanto você, batendo asas acima do vazio, socava o ar antes de se precipitar em um buraco, ao mesmo tempo que continuava rigorosamente imóvel, colado à superfície sinistra dos lençóis, eu voltava lentamente a ficar de pé, estava presa em uma sala redonda e sonora que tinha cerca de quinhentos e setenta e cinco milhões de peitos zunidores que bradavam vingança por causa do aniquilamento de infindáveis famílias, que fugiam e se amontoavam em barcos revirados pelo silêncio. Oprimida sob o peso dessa enorme bola de peitos, bochechas, de sangue e de mandíbulas, eu pisoteava e escavava o chão.
Será que foi durante vários dias, ou vários meses, ou mesmo vários anos, ou será que isso aconteceu de um só golpe, naquela margem do Sena onde eu me deitava, contraindo os olhos, o nariz e os braços, a fim de não mais ver para viver, ou será que foi quando eu te fazia repetir dezessete vezes uma palavra que você não conseguia articular, será que eu fiquei presa em uma palavra que você não conseguia articular, ou então foi dentro de um saco, uma bola redonda ou um osso, terei eu ficado ali, uma palavra colada na minha cara, que fazia barulhos de rato, antes que meu rosto se esmagasse contra o muro, terei eu ficado nesse muro, era uma noite de fevereiro, minha mãe rodopiava furiosamente por sobre os Halles de Paris, seus bracinhos cheios de esperança volteavam no fundo da escuridão, terei eu terminado como um rato ou me tornado uma palavra riscando os muros, que ninguém jamais tinha pronunciado, em que momento comecei a rastejar, eu rolava pelas escadas, sufocando sob o peso daquela enorme esfera, eu não parava mais de tremer, era inverno e de tanto tremer no inverno eu voltava a sufocar, de inverno em inverno trêmula sob o peso dos invernos sufocantes eu não parava de me dobrar nas escadas, durante vários anos eu ficava presa em um inverno trêmulo de escadas, como é que eu pude rolar por tanto tempo naquelas escadas, me levantar e rolar novamente por tanto tempo naquelas escadas, me levantar e rolar novamente por tanto tempo naquela época cheia de escadas e de crianças sujas, será que essa palavra arranhava por debaixo da tua pele, corroía os móveis e as cortinas, teria se refugiado embaixo da tua cama, será que essa palavra cortada rente fugiu de você como a peste, será que ela propagou tua peste, será que era preciso abatê-la para o teu bem, reduzi-la a não ser mais que um serviçal, que ela rolasse na vergonha e prosperasse sob os teus lençóis, que se remexesse no pó como uma velha, como uma doença mortal, como a ameaça de morte, me libere da tua guerra, eu tentei dizer as palavras, eu disse bem rápido as palavras ao contrário, meus dentes todos caíam, eu perdia pé, minha cara transbordava, eu disse as palavras em voz alta, elas ficaram em suspenso, elas gelaram sob o teu olho, completamente esvaziadas entre nossas duas frontes, elas se estiraram por toda a largura da sala, fizeram como que um longo fio escuro entre os nossos dentes, e onde quer que eu fosse na cidade meu corpo era puxado para trás por aquele suco escuro que crescia entre as nossas mandíbulas, me ligando àquela sala onde eu me via todos os dias em suspenso diante dos teus dentes, em suspenso na tua orelha aberta, em suspenso diante dos teus olhos sangrentos, naquele quarto estreito e morno onde eu tinha afundado na sua boca antes de afundar no chão, onde o frio tinha me conservado, meu corpo estava caído e rapidamente me multipliquei ali, milhões de corpos tinham caído, um asilo de trapos, que sob o teu passo pesado produzia um estalo mortal, eu tinha acabado de desaparecer no chão, eu não era mais que uma palavra definhada que resvalava os rodapés, uma enorme doença de palavra branca e mole enraizada na minha carne, antes que eu a fizesse sair de mim numa noite de dezembro, eu acho que era uma noite de dezembro, o bairro mijava cabeças sacudidas pelo vento gelado, as poças e bolhas borbulhavam no teu sistema nervoso central, uma grua de desgraça subia no céu, o quarto se esvaziava pelo alto, teu corpo serpenteava entre as bordas fixas da cama, os lençóis avançavam, recuavam, os corpos e os objetos se uniam, se separavam, depois se colavam numa perspectiva improvável de elementos grotescos que teus olhos acabavam confundindo com o branco sujo dos muros, tua cama era um grito nu de três patas, ela saltava entre os humanos e as coisas, que bom gole de ar era esse grito arrancado das ondulações dos lençóis, esse grito que não piscava e absorvia a luz, meu rosto comprido se desarticulava no espaço, eu distinguia minhas mãos, que se contorciam nos braços de uma cadeira antes de se esvanecerem na profundeza indeterminada do quarto, e a cabeça sem parar, a cabeça sem parar não se reconhecia mais, a cabeça como um prego tremulando sobre o teu peito, espreitava o ar entre as tuas gengivas, o ar vencido fugindo por todas as bordas da tua boca, o ar pendurado que não voltava, o segundo que se decompunha, o segundo que não parava de se deslocar no silêncio, o segundo que estourava no meu peito, o ar no lugar, o ar sem lugar, o lugar do morto, o ar debaixo de uma pedra, em um buraco, o apodrecimento do bom ar aprazível, a cabeça fitava o olho turvo da tua cabeça doente, a cabeça estava mal conectada, ela flutuava descolada, com os seus grandes olhos, horizontalmente acima do teu olhar morto, eles acariciavam tua cabeça doente, eles a metiam em uma caixa, eles a enterravam, a cabeça estava atravessada pelas tuas mãos escuras, ela estourava, escorria, a cabeça caía outra vez, rolava a toda velocidade, a cabeça cheia d’água, estendida sobre a terra, transbordava e jorrava sem abrir os olhos, a cabeça era recolocada no corpo, a cabeça era sacudida, a cabeça era bem fechada, levante e ande, eles gritavam para mim, eles batiam dentro da minha cabeça, a cabeça caía por terra e rolava, ela começava a se arrastar, era uma noite de dezembro, eu acabava enxugando o rosto, eu saía de você, eu não sei onde eu estava, eu nunca soube direito, eu nunca estive ali, isso não me interessava, e pode ser que não houvesse nenhuma outra explicação para esse desaparecimento, mas então onde é que eu estava, eu precisava sair, o médico dizia ele está morto, ele está mortinho, ele está mortinho da silva, e em relação a quem, isso não está claro, tudo isso não prova nada, o senhor acha que isto aqui não é merda o suficiente, você me enche o saco seu escroto de merda, enfermeiras sussurrantes chegavam apressadas no corredor, eu tinha que sair daquele quarto, eu tinha que achar uma solução para torcer aquele segundo de grande complexidade, que eu já sentia se espessar como um chiado, que ia se transformar em semanas, todo um inferno de semanas que permaneceriam sendo o mesmo segundo, indefinidamente declinado nesse quarto de hospital, trata-se apenas de, sempre se tratou apenas de um, desse segundo, trata-se apenas desse segundo, sempre se tratou apenas desse segundo, foi a partir desse segundo que os meus olhos se tornaram a grande história em que os meus olhos são o segundo em que começa a história da minha voz que gagueja toscamente, esse segundo pulverizou toda vida em um segundo, esse segundo fez jorrar um grito no céu, que imediatamente caiu e se perdeu no chão, esse segundo colou de ponta a ponta um grito infecto de terror e duas mãos agarradas a um corrimão, duas mãos que são duas borboletas, um pé depois uma perna aparecem, esse segundo colou de ponta a ponta um grito, duas borboletas e um filho da puta, que acabaram não fazendo mais que um grito de filho da puta com duas borboletas sobre uma perna, duas borboletas sobre uma perna mergulhadas em um estado de estupor dócil, que imediatamente caíram em um hospital distante onde homens e mulheres mastigavam maquinalmente o ar em frente a uma tela de televisão, e a esse grito de hospital distante se somou um medo insuportável, uma grande sede, entranhas, dentes e unhas, um lamento, ideias vagas, um ar sujo, e essa tela de televisão funesta, lúgubre, assustadora estava conectada aos alienígenas, tudo se confirma, tudo está claro, você os viu, não eu não os vi, e deformando esse medo insuportável, arrastando-o pelo caminho, eu fiz dele uma paisagem, e torcendo essa paisagem de louco sobre uma perna que mastigava maquinalmente borboletas de cretinos lúgubres, eu consegui dobrá-la, encolhê-la, e assim extraí dela uma criança sem dentes e sem unhas que eu encurralei em um soluço de borboleta que entrou saiu, entrou saiu, soprou o ar para fazer tudo explodir, os homens e as mulheres que mastigavam os hospitais, sua grande sede de ideias vagas, e a esse insuportável soluço de borboleta que entrou saiu, entrou saiu em uma crispação inevitável se somou o caso tão inquietante do teu grito, que inchou e devorou em um segundo esse segundo, teu grito arredondado, essa enorme bola redonda, aglomerada de grama encharcada, de saliva e de baba, de cabelo, de língua, de mijo, de punhos, de pedras e de bochechas, de grandes cabeças suadas, de coxas e palavras quentes, de pradarias raivosas, de caminhos, de buracos e brilhos, essa enorme bola compacta de nervos e de grito, hermeticamente fechada no dia ruim, que se contorcia sobre um pé, arrastava sentia resfolegava, deslizava e esperneava no chão, digeria esse segundo, e é assim que ela invadia o hospital com um mar de mijo e de saliva, é assim que os homens enraivecidos devoravam as cabeleiras das mulheres agitadas por pesadelos, que balançavam suas grandes cabeças de pedra nas telas de televisão, choviam mandíbulas, debaixo de uma árvore se escondia uma criança alienígena de um pé só que cai, ela se ajeitava, se contorcia sob um céu quente, então enfiava sua língua nos buracos dos caminhos e se dobrando, se batendo, se apertando, se afundando, rolando, ela se enfiava realmente bem em um buraco, ela ficava ali, envolta de terra, se alimentando de pássaros, de mijo e de palavras profundas, seu crânio se abria e se desdobrava em na tua respiração, sua língua saía, se desamassava, os dois braços vasculhavam os seixos, as pernas manchadas de cadáveres de pássaros fumavam no fundo do buraco, o rosto, o pescoço, o peito, a barriga, se fundiam em uma única e imensa língua obstinada, que rolava nas poças, se empoleirava nas árvores, alçava voo num céu escuro e cru, e a criança virava uma língua que suava o sol e a fúria, uma língua que esfolava o mundo rígido, uma língua que comia crus os bichos com a boca toda preta, uma língua vil capturada por centelhas, que se deformava, dobrava e borbulhava na umidade das próprias entranhas, uma língua afiada, uma língua-faca que rondava até a morte sob a pele dos homens maus, uma língua retorcida, uma língua-rato que raspava, se movia, rasgava, uma língua preta e ruidosa das profundezas do mundo, uma língua subterrânea, uma civilização de lama e noite, uma língua que vivia onde se situava o abismo.
Eu tinha feito muito barulho, eu não queria que isso recomeçasse, estava tudo acabado, o que é que eu sabia a respeito, me deixe falar, você era tudo, por que está se metendo, tudo recomeçava no mesmo lugar, já era alguma coisa, me diziam que eu tinha acabado com isso, o que é que eu tinha acabado, eu tinha que te deixar, eu não ligava mais pra você, morreu de quê, eu ia acordar, era noite, a partir de qual momento naquele quarto, a partir de qual momento naquele quarto de hospital, ninguém tinha falado mais nada, não tinha ousado dizer mais nada, tinha decidido nunca mais dizer aquilo, aliás eles já tinham dito antes, tinham tentado desesperadamente dizer, e o que poderiam dizer, se tudo tinha acabado, será que sabiam ao menos do que se tratava, que iriam se esquecer de dizer aquele pensamento que entalava as suas gargantas, que iriam continuar a te olhar como se você falasse com eles, era mais simples deixar aumentar o silêncio, para que nada alcançasse o que estalava imperceptivelmente no meio do vazio, aquela energia descontínua, de grande intensidade, em relação estreita com o meu olho e a minha boca, que se grampeava a mim, me atravessava e se superpunha ao mundo real, enquanto o teu corpo rígido, com a cabeça dependurada, contemplava outros mundos, eu corria na minha cabeça imóvel, eles não me viam, frases intermináveis saíam dos seus olhos, as costas se curvavam, os braços pendiam à beira do vazio, eu permanecia na sombra, achatada no chão, meus dois braços vasculhavam as pedrinhas, não tinha mais cores, eu nasci aqui, eu sobrevivi sobre o osso do teu crânio, você não me via, você nunca me viu, as pessoas sussurravam, passavam horas se revelando para si mesmas enquanto te olhavam apodrecer, elas morriam lentamente daquela palavra que tentavam devolver para o fundo da garganta olhando os teus olhos fixos e ternos, em que exato segundo a sanidade deles tinha desmoronado, por um momento eles pareciam querer falar comigo, sabiam eles, então, quem eu era, eu que não conhecia nada da minha situação, mas eles voltavam a se plantar no fundo do quarto como estacas, ouvíamos o teu corpo afundar ao longo da cama, carregando o teu grito terrível, você tinha me emprenhado de um monte de coisas infectas, boas de matar, eu tinha agora uma enorme bola como cabeça, trágica de prender, a água tinha se movido para dentro e eu andava cuspindo pelos olhos, o mundo estava transtornado, eu não encontrava mais as palavras para suportar o cheiro da tua morte, nada mais me detinha, eu a ficção concreta, eu o tempo escapando, eu o milhão escapando por todos os buracos, eu o milhão escapando, o todo por toda parte do milhão convulsivo, a totalidade do todo por toda parte jorrada do milhão, o milhão das esquinas, a respiração lívida do milhão, as pernas do milhão branco e esportivo, a opinião do milhão domesticado sobre o milhão servil, o milhão estável e adequado que estimulava o mercado-milhão, o mercado-milhão que queria ver os homens se degenerarem aos milhões, a grande paz amigável dos milhões impiedosos que usavam milhões de cadáveres, os detentores do milhão que desfrutavam do milhão dos perdedores, a péssima memória do milhão mecânico, as pequenas garras do milhão contemporâneo e urbano, hostil ao lamento imundo do maldoso milhãozinho, eu o milhão escapando, terrível em um monte de lixo, civis engolidos e desonestos, civis trouxas, amolecidos, homens medianos famintos escapando excitando a unanimidade, excitando o focinho estacionário, escapando, fugindo com o olhar fixo, eu a violência, eu a violência do choque, eu o choque, eu o choque dos fodidos de nós, de nós eu a violência dos fodidos, dos fodidos o eu da violência, do choque os nós do fodido, do fodido as mentiras dos vendidos, dos vendidos a violência dos fodidos furiosos, eu o maldito fodido da barriga suja, o fodido de nós vendido, o fodido de nós forçado que se mexia por último, eu o milhão fodido por todos os buracos, eu o milhão, o fundo do homem ameaçador, eu o milhão fodido intolerável, eu o milhão dos fodidos tão sofrível a longo prazo, que continuava a se erguer, tão sofrível, o milhão tão sofrível, a floresta do milhão que crescia, o milhão dos fodidos de nós surpresos de ainda estar de pé, que tentavam trazer violentamente de volta à terra, eu a violência dos fodidos de pé, eu a floresta dos fodidos diante da lua, eu o choque dos fodidos contra a lua, a floresta dos fodidos adormecidos arrancados aos milhões, o pulmão obstruído dos fodidos em chamas, a paralisia dos fodidos que trabalhavam em se foder, a fuga dos fodidos para o mar, o pequeno batimento dos fodidos que flutuavam no fundo do mundo, o plâncton dos fodidos em suspensão em um oceano de porra, o brutal aumento do nível de bobagens fodidas, o desfudeflorestamento do planeta, o desenraizamento dos grandes fodidos vivos pelo Grande Fodido Chato, a incrível densidade do fodido bem pensante, em guerra contra os fodidos vivos, toda a minha vida fodida pelos desejos abjetos do fodido bem pensante, o Grande Fodido Fluido ulcerado pelos fodidos em luta, fluidos se tornariam os fodidos vivos, decidia o Grande Fodido Ganancioso, fluidos, informes e horizontais se tornariam os fodidos líquidos antes de escoar pelos canos, liquidemos os fodidos líquidos que fissuram a doçura de viver do Grande Fodido Cínico, fluidos se tornariam os fodidos presos da manhã até a noite que brotavam, triplicavam e transbordavam, aquela maré alta de pequenos fodidos sebentos, aquela enxurrada de fodidos surdos que escoava e escorria no Grande Fodido Próspero, devoremos os fodidos afogados, que deslizam silenciosamente uns sobre os outros, antes de tomar definitivamente a forma do Grande Fodido Ávido, flexíveis se tornariam os fodidos sulfúricos, com as costas curvadas nos canteiros e nas pedreiras, flexionados os fodidos agroquímicos de mãos roídas, dobrados nas fazendas, nos galpões e nos carros, agachados os velhos fodidos empanturrados que transpiravam e trabalhavam na tecelagem de tapetes, no envernizamento de pompas fúnebres, os fodidos fluidos de traços repuxados circulariam harmoniosamente, suavemente e sem revolta, conectados entre si por suas patinhas para proteger o Grande Fodido Voraz, decadência fodida, maldita multidão crente fodida, malditas vozes fodidas perdidas, maldito acidente das vontades livres, malditos espasmos fodidos, maldita carne fria.
Eu devia refletir, nós devíamos refletir, nós devíamos refletir na sequência refletir, nós devíamos respirar forte a sequência e não afundar, na sequência não acreditar que se está morto a longo prazo, e essa sequência implacável ia fazer uma limpeza geral nos nossos crânios e faria tanto frio que a gente se arrependeria até daqueles dias em que estava infeliz sem sequência alguma, com nossas grandes queixas no fundo de nós temperadas de amargura, nós devíamos elaborar uma sequência, uma sequência que fosse quebrar nossos grandes dentes inquietos, uma sequência que fosse se plantar até o fundo do gelo, até o fundo da dor, até o fundo do monstro, até o fundo das coisas mortas, e essa sequência seria um só movimento contra tudo, e um movimento que contra tudo gostaria de entrar na grande pele do grande tudo, nós devíamos refletir na sequência, o instante era grave, daí a importância de refletir cuidadosamente sobre essa sequência, era preciso, era preciso tentar, era preciso imaginar essa sequência um pouco como uma grande teta, e nós viríamos todos nos amontoar contra essa grande teta e sentiríamos de repente estremecer todo o nosso sangue e todos os nossos músculos e tremeríamos como gazelas, nossos lábios molhariam na direção das tetas dessa porca, dessa porra de porca perseguida, que eu sempre tinha acreditado desmiolada, esportiva e higiênica, para a qual eu jamais tinha concedido qualquer importância, pois essa perseguição era o partido da morte, podíamos investir essa perseguição sem necessariamente nos tornarmos uma sequência de problemas, podíamos muito bem morrer das consequências da perseguição, mas não iríamos cometer o erro de deixar ali a nossa pele, iríamos nos cuidar na sequência, iríamos cuidar da nossa esperança, iríamos fazer dessa perseguição em sequência uma sociedade viva que se importaria com a esperança de uma sequência, dali em diante eu estava pronta para ser capturada, para ser capturada na sequência pela sequência, para macerar, fervilhar, feder, eu devia me safar daqui, parar de arrastar longos momentos falando sozinha, era pior que a morte.
Primeiro capítulo de Koma Kapital (Al Dante, 2015).
Anne-Claire Hello, ou simplesmente A.C. Hello, escreve, desenha e pinta, mas, acima de tudo, performa e lê seus textos em voz alta. Entre seus livros publicados estão Naissance de la gueule (2015) e Koma Kapital (2021).
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