Tradução de Sérgio Alexandre Novo Silva e Tatiane França.
Muitos escritores hoje (os poetas em primeiro lugar, o que é importante) se põem à escuta dos pássaros. Eles os escutam, os imitam, participam de seu canto, lhes respondem, os seguem, os veem cair, se perguntam (com audácia mas também com escrúpulo) o que dizem e o que nos dizem os pássaros – tanto os pássaros que cantam como os pássaros que morrem. Em suma, eles dedicam seus esforços a escutar e a traduzir o que Dominique Meens chama de “línguas ocelas”.
Lirismo, pássaros: um encontro que não é novo. Mas creio que, nos dias de hoje esse é, para a poesia, muito mais que um motivo privilegiado ou uma ocasião de experimentar a harmonia de seu próprio canto. Tais chuvas de pássaros na escrita e no pensamento contemporâneos fazem parte de uma nova atenção ao terrestre, a essas “coisas” da natureza reputadas como “sem fala”. E é preciso reconhecer aqui a expertise do poema, sua expertise em pleno desastre ecológico.
Por quê? Porque esses seres que hoje solicitam tão fortemente que os tratemos de outro modo, os pássaros, portanto, mas também os ventos, os rios, as florestas, os fantasmas… esses seres são as nossas tão antigas coisas líricas. Nesse âmbito a poesia é muito sábia, e atesta a sua seriedade em relação ao presente. Dela também é preciso se pôr à escuta, pois os poetas bem sabem ouvir essas coisas que não falam; eles não temem se dirigir a elas, interrogá-las e nem mesmo, por vezes, desafiá-las. Eles conhecem as maneiras que a natureza possui de se fazer escutar. Eles estão exatamente ali para escutá-la e responder por ela. No entanto, eles não fingem que tais coisas possam falar, não emprestam a elas o dom da fala nem tampouco simulam nelas uma espécie de voz. Não, eles fazem menos, e fazem bem mais: eles as escutam se calar e as ouvem gritar, reivindicar, protestar, sonhar, até mesmo pensar – e em todas as ocasiões afirmar que está na hora de viver de outra maneira, de verdadeiramente viver de outra maneira.
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O último livro de Fabienne Raphoz, Porque o pássaro, leva o seguinte subtítulo: “Cadernos de verão de um ornitófilo”. Não se trata nem de um ensaio de ornitologia, que nasceria de uma abordagem erudita; nem de um manual de birdwatching, que se inscreveria numa prática regrada, socializada, composta por técnicas, pela frequentação de áreas favoráveis, pela partilha de informações pertinentes, de encontros e de instrumentos (“Uma luneta! Aí está um utensílio que me exige alguns minutos de instalação na direção do pássaro, o qual nunca deixa, durante a manipulação, de desaparecer¹”…). Não, trata-se de um livro inspirado pelo amor aos pássaros e pelo prazer encontrado na existência deles. Fabienne Raphoz é inclusive a criadora da coleção “Biofilia”, pela editora francesa José Corti, e esse nome, “Biofilia”, diz a mesma coisa para tudo aquilo que vive: que hoje a ecologia não poderia ser apenas uma questão de ampliação de conhecimentos e de domínios, nem mesmo de preservação ou de reparação, mas que pede também algo de uma philia: uma amizade pela própria vida, uma paixão pela variedade de seus fraseados, uma preocupação, um cuidado, um vínculo com a existência das outras formas de vida e um desejo de reconectar-se realmente com elas.
Ornitofilia, então: alegria em ver que os pássaros estão aí, surpresa que eles existam e que sejam como são, prazer encontrado na forma de sua presença – naquilo que nos aparece como seu júbilo, na maneira como povoam o céu e abrem à frente e acima de nós um mundo de linhas e de cantares. Mas também, e sobretudo, vigilância quanto a seu futuro, e tristeza diante de seu desaparecimento.
O conjunto poderia se definir num gesto, muito bem descrito pelas palavras do poeta George Oppen: “Abrir a janela e dizer, vejam, um mundo existe, e está – por algum tempo ainda – repleto daqueles que amo.²” “Por algum tempo ainda”, de fato, visto que tudo isso deve ressoar sob um fundo de despovoamento e de um desaparecimento observado por toda parte: em quinze anos, quase um terço dos pássaros desapareceram de nossas paisagens (incluindo aí cidades, campos e florestas). O livro de Fabienne Raphoz dá testemunho desse despovoamento, ainda que por um momento acalme a inquietude, ao se demorar no gozo amplamente compartilhado que há em ver e ouvir os pássaros, redobrando-o pela escrita (inapagando-o, diria Michel Deguy) e misturando permanentemente essas duas percepções: a beleza dos pássaros e a tristeza em vê-los cair, como se perdêssemos um amigo de vista: “Desde 29 de junho que não somos acordados pelo Rabirruivo-de-testa-branca.”
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Trata-se de tristeza, de fato, e não somente da constatação de uma extinção: é a outra face dessa philia. Há alguns anos, a Wildproject (uma editora francesa de ecologia filosófica, que está em busca de ferramentas de compreensão do mundo que virá) republicava Silent spring (1962), um livro célebre de Rachel Carson em que se ouvia pela primeira vez a consciência em grande escala de um saque ecológico³. Esse título, então, “Primavera silenciosa”, inspirado pelos versos de Keats, dava uma forma pungente a essa consciência; nomeava-lhe não apenas o símbolo, mas a emoção mais bem partilhada: a que vem da rarefação do canto dos pássaros, e da perturbação quanto ao estado tual de nossa vida sensível e das marcas íntimas de nossa relação com o mundo natural. A primavera se calou, algo de muito familiar nos é progressivamente retirado, algo que nos envolve, algo imemorial, a prova e a celebração habituais do mundo, esse acesso que ainda canta na intensidade do vivo e que nos chega, alegremente, dos pássaros.
Na verdade, os pássaros não nos comovem por serem a figura do longínquo, da esquiva, da fuga (como tantas criaturas de uma natureza que “ama se esconder”, mesmo se não as vemos), mas por uma verdadeira intimidade sonora. Essa intimidade é um benefício, pois, a esse mundo sonoro que eles abrem a nossa frente, temos (ou tínhamos) o hábito de associar valores morais: o de uma vida-mais-que-vida, de uma alegria ou de um júbilo de intensidade particular, de uma qualidade de aperfeiçoamento em que o canto de alguma maneira anuncia o mundo natural, sua beleza e grandiosidade.
Leopardi, por exemplo (cuja obra também foi republicada – os pássaros, como vemos, caem de toda parte, como enormes granadas se abatendo sobre nossos solos devastados): “Os pássaros são por natureza as criaturas mais alegres do mundo. [...] Eles sentem a alegria e o júbilo mais intensamente que qualquer outro animal [...]. São dotados de uma alegria intensa diante das pradarias sorridentes, dos vales férteis, diante das águas puras e límpidas, das belas paisagens. E é digno de atenção que aquilo que nos parece amável e agradável o seja também para eles.⁴” – Um lugar comum, evidentemente. “Os pássaros não se importam com a sua alegria. Não se importam com o canto, com o voo, com o riso, com os movimentos, com a imaginação, com a infância e com a riqueza que você atribui a eles; não se importam com os trajetos que você impõe a eles (da felicidade ao canto!), não se importam com seus lugares-comuns⁵” ... Mas um lugar comum que dizia muito bem, durante um certo tempo anterior ao do tormento ecológico, o que pode nos conectar, mais do que ao destino de uma espécie, à ideia de vida que ela parece garantir: ao que ela diz sobre o que a vida pode ser, ao pensamento sobre a vida que ela formula (os pássaros de Leopardi cantam uma terra que dava certo, que pensávamos que dava certo). Canto de alegria (a “alegria perfeita” de Francisco de Assis, que entendia de pássaros) entoado pela própria vida, jogo e consolação que crescem por serem permanentemente elevados, dispersados naquilo que Rilke chamava o “Aberto”. Pois à genialidade sonora, a espécie acrescenta a genialidade do voo: “Conceder a um mesmo gênero de animal o canto e o voo simultaneamente foi uma importante disposição da natureza; de forma que aqueles que deveriam consolar com a voz outras criaturas vivas poderiam fazê-lo de um ponto elevado, de onde os cantos se propagariam mais amplamente no espaço e alcançariam ainda mais ouvintes.⁶”
O mundo dos seres vivos que se declara e que canta a si mesmo, aí está o sentido e o legado afetivo do canto dos pássaros. E são esse sentido e esse legado que nos faltam agora que esse canto se enfraquece, e que a evidência dessa alegria é puxada tal qual um tapete sob nossos pés.
Pois a população dos pássaros está desabando, como sabemos; seu desaparecimento massivo se deve à intensificação das práticas agrícolas (especialmente da cultura do trigo) e à generalização do uso de neonicotinoides, pesticidas neuro-disruptivos, muito persistentes, que estão também em causa no declínio dos insetos, especialmente das abelhas. A cotovia, a gentil cotovia, é particularmente afetada; mas também as espécies não especialistas de ecossistemas agrícolas, nos ambientes urbanos. Aliás, devemos o diagnóstico desse colapso tanto a amadores quanto a cientistas – aí se percebe definitivamente uma amizade pelos pássaros, algo que cada um pode experimentar por conta própria.
O desafio, portanto, não é saber exatamente o que significa o canto dos pássaros, o que os pássaros comunicam entre si de galho em galho: isso seria um assunto de biossemiótica, o que não está exatamente em questão. Mas sim o que esse canto diz, o que ele nos diz: o pensamento que ele suscita e encoraja, o mundo no qual ele nos faz entrar e habitar, a alegria sensível e meditativa que ele desperta em quase todos, especialmente nos dias de hoje: o que o não-canto dos pássaros ensina; o que provoca em nós o fato de os escutarmos se calar ou de os escutarmos somente ainda cantar.
Porque o que vem com a consciência dos desastres ambientais e de sua decorrente desanimação é também uma transformação de percepção, uma transformação dos próprios postos pela percepção da natureza: o que decidimos escutar, o que somos capazes de ouvir, o que saberemos (ou definitivamente não) fazer com essa escuta. Escutar os pássaros neste mundo devastado (“Listening to birds in the Anthropocene”⁷), eis de fato uma percepção inteiramente carregada de ansiedade; isso consiste tanto em desfrutar de seu canto, ou mesmo em nos considerarmos (em nos compreendermos) consolados, quanto em sentir nossa potência de estrago. Nossa inquietação, nossa desorientação. – É a mesma coisa em relação ao azul do céu, a essas ondas de calor em pleno inverno das quais não podemos tão somente desfrutar.
Talvez apenas transformações perceptuais dessa amplitude – ouvir que não estamos mais ouvindo e que os vizinhos já se foram, sentir que o que temos sob os pés treme e se agita, perceber o grito de Gaia, ver o clima – sejam capazes de marcar uma oposição, nos corpos, às negações criminosas das mutações climáticas, e de impulsionar decisões políticas em grande escala. O último livro de Bruno Latour⁸ segue nessa direção ao encorajar outros vínculos, outros afetos políticos, outras atrações, outras alianças. E é evidentemente o que está em jogo nas ZAD⁹: uma repolitização da ligação com o solo e do afeto que teríamos por ele. Definitivamente, uma philia.
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Alguma coisa quer se reconectar com uma escuta. Há muito tempo, líamos as entranhas ou o voo dos pássaros; depois, acreditamos discernir neles o humilde piado de um deus que havia decidido acampar entre nós, habitando os mais modestos constituintes deste mundo. Atualmente, procuramos voltar a escutar o mundo, escutar novamente a “fala” das coisas da natureza; invejamos por vezes, nesse mérito, os povos de tradição oral, sonhamos em ser animistas. É que realmente esperamos reencontrar uma escuta e uma sensibilidade mais vastas, mas num sentido inteiramente novo, completamente envolto dessa ansiedade ecológica. Em um livro inspirador, apesar de sua continuidade um tanto discutível, Como a terra se calou¹º, David Abram propõe por exemplo estabelecer uma nova “ecologia dos sentidos” como uma primeira réplica aos estragos oriundos da exploração de uma natureza taxada como muda: trata-se de reconhecer a parte de nossa vida sensível que cabe ao mundo natural, de pensar a “coanimação” de nossos sentidos e daquilo que os solicita. E David Abram descreve suas conversas com os animais, com as pedras ou o vento, seus duos com um mundo intensamente reanimado, um mundo que responde a seu chamado, que vive através dele, que pensa a si próprio nele.
Voltar a escutar, aprimorar uma escuta, é também o que busca o especialista em bioacústica Bernie Krause. Ele trabalha com a conservação do rastro desses mundos sonoros, celebrando seu esplendor, mas também testemunhando suas transformações – suas degradações, suas desarmonias inéditas. E ele sabe que é afetado por essas transformações. Tal trabalho implica ademais uma técnica e um modo de inserção precisos (onde se impõe novamente o princípio de um vínculo, de uma proximidade, às vezes até mesmo de uma relação): ao remote recording, a gravação à distância que permite deixar um microfone por dias inteiros no campo, legando a ele o encargo do testemunho, sua abordagem opõe o attended recording, que demanda a presença no local, a escuta a postos: “Instalo meu microfone e me afasto alguns metros. Sento-me sem fazer barulho. Os microfones não afetam os animais, eles se acostumam em poucos minutos com sua presença. Não os escondo nunca, e permaneço nas proximidades.” Bernie Krause passou quase cinquenta anos escutando a natureza, reunindo arquivos em uma biblioteca sonora de mais de cinco mil horas, uma trilha sonora ao mesmo tempo proveitosa e inquietante, uma vez que para ele trata-se agora de um alerta sobre o desaparecimento de milhares de espécies.
- Fiquei, como muitos outros, muito impressionada com a exposição Le Grand Orchestre des animaux/ A grande orquestra dos animais exibida há pouco pela Fundação Cartier. Depois soube que as gravações de Bernie Krause, rastros de todo o seu trabalho de captação de paisagens acústicas (rastro de sua beleza e de sua destruição, portanto) haviam acabado de se tornar fumaça no incêndio de sua casa, na Califórnia... A notícia era aterradora, como uma pontuação cruel da degradação. O grito de Gaia aqui se reiterava, se intensificando de silêncio.
Ponge sublinhava em suas “Notas tomadas por um pássaro” que, em francês, a palavra “oiseau” – “pássaro” – contém todas as vogais do alfabeto. Isso faz dela “uma espécie de canto integrado ou latente”. “Mas agora as vogais se calaram e integral é o silêncio com que os pássaros mortos, que a ele tiveram acesso, se colocam diante de nós¹¹”. É o que escreve Jean-Christophe Bailly diante das fotografias de pássaros mortos de Éric Poitevin, em O poço dos pássaros (que substitui os gestos dos embalsamadores pelo tempo da captura fotográfica, tomando enorme cuidado em testemunhar que ali havia vidas). E os bichos caídos também falam da paisagem que os contém: “Os pássaros mortos, aqui, são os sons que desaparecem do país que os continha ou que os viu passar. [...] O que faz com que os pássaros mortos que sobrevoaram tudo isso, que se uniram a tudo isso em núpcias desconhecidas por nós, [...] levem com eles o perfume e a turfa, e é isso também o que vemos, ou adivinhamos, nas imagens neutras de seus corpos suspensos.¹²”
O desaparecimento do canto dos pássaros é a medida sonora daquilo que acontece com o nosso meio ambiente inteiro: daquilo que acontece conosco. É o seu poema gritado, a sua elegia, o lamento, esburacado de gorjeios, do Antropoceno. Os pássaros não-cantam nosso mundo devastado.
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A extinção dos pássaros efetivamente murmura, acusa, testemunha: ela canta a lembrança, o luto ou a imaginação de uma terra bem tratada. Cantos e não-cantos, paisagens de desaparições, gemido mudo das águas, queixas replicando nossos meios desfigurados... há, de fato, muito a escutar. Não é só que as coisas do mundo se calaram, se calam e (nos) fazem escutar que se calaram, é que também não escutamos muito bem.
No entanto, colocar-se à escuta, discernir, escutar alguma coisa não-falar, escutar o mundo mudo murmurar ideias, propostas, testemunhos – isso se aprende. E os poetas, honra aos poetas, são especialistas nisso, eles que sabem escutar o que não fala (mas canta, grita, por vezes nada diz ou nem mesmo existe). Eles estão aqui para isso: oferecer a escuta, ampliar a percepção, disseminá-la, responder por ela. Ponge – mais uma vez ele – passou a vida fazendo isso: escutando aquilo que não fala e que nem por isso pensa menos, que muito sabe e muito diz. Seu O partido das coisas se dedica inteiramente a isso.
Pássaros que não-cantam: um poeta sabe escutar isso, e sabe transmiti-lo. Como Valérie Rouzeau, em Sentido torrente (lembrando-se de Bashung): “What’s in a bird um albatroz morto numa praia / What’s in a bird muitos passos uma canção volúvel / Mas tampas de garrafas sem mensagens do pássaro / Coca fanta soda zero açúcar sem alegria / Canudoscomo se desse para beber o mar / Pedaços de bonecas barbie nenhuma música / Pérolas de plástico em todas as cores e tamanhos [...] / What’s in a bird encalhado sobre a areia suja / Pelo tempo atroz que está fazendo – o pássaro atualizado¹³”. (Vejam – diz Jacques Bonnaffé que recita frequentemente esse poema em suas leituras – que podemos muito bem nos esgoelar poeticamente).
Não surpreende, portanto, que a poesia esteja hoje tão povoada de pássaros, pássaros em todos os seus estados, pacientemente escutados. Todos os dias um número considerável de poemas nasce dessa escuta; os de Jacques Demarc (Zozlos), de Dominique Quélen (Avers e Revers), os de Dominique Meens (há bastante tempo e voltarei a falar dele), Le rrawrr des courbeaux de Catherine Weinzaepflen... Mas aparecem também livros eruditos, de eruditos da atualidade ou de uma outra época, como Jacques Delamain, com seu Por que os pássaros cantam, ou Charles Brongniart, com sua História natural popular...
A poesia encontra nisso o esforço de uma antropologia ampliada, estendida a outros sujeitos além dos viventes humanos. Em sua virada “ontológica” (com Philippe Descola, Marylin Strathern, Eduardo Viveiros de Castro, Tim Ingold, Eduardo Kohn, Anna Tsing...), a antropologia convida, efetivamente, a reconhecer o estatuto de sujeito para viventes não humanos, e também para não-viventes, dotando-os de uma interioridade, de uma capacidade de significação, de uma capacidade agentiva (com efeitos já sensíveis no domínio do direito, por exemplo). Ser pedra, ser rio, ser máquina, ser margem, ser bicho: muitos modos de ser de agora em diante reunidos sobre um mesmo palco ontológico e político – já que é com cada uma dessas formas de vida que nós devemos nos unir, e que é de cada uma delas (de seu silêncio) que devemos nos colocar à escuta.
- Seria preciso comentar longamente aqui a iniciativa de Eduardo Kohn em Como pensam as florestas¹⁴, um livro exemplar dessa ampliação do parlamento das vozes a escutar. Sua proposta consiste justamente, numa reflexão sobre as relações e os apegos (ele parte da observação da maneira como os Runa da Alta Amazônia interagem com a grande variedade de criaturas que povoam seu ecossistema), em propor uma teoria dos signos estendida à natureza: a vida, aqui, é inteiramente semiótica. O livro é significativo; mas talvez seu aparato semiótico restrinja a respiração que ele propõe, a abertura que ele opera (e que seu título sustenta tão bem, dizendo justamente, ainda que exagere, tudo aquilo que esperamos). Isso porque a semiótica deseja apenas o signo, só está pronta para os sinais, enquanto Kohn (com razão) ousa esperar pelo pensamento. Ícones ou índices não estão à altura do problema, o problema de sentido e de escuta que está aqui em questão. Contudo, o livro excede esse seu aparato, disso o fervor de seus leitores é testemunha.
Acredito que seja necessário, para escutar as coisas do mundo pensarem, mais imaginação e mais tato ao mesmo tempo (um tato ontológico, conceitual, linguístico); mais imaginação, mais audácia para se pôr à escuta dessas coisas do mundo, escutá-las gritar, reivindicar, pensar, sonhar; por outro lado, mais tato diante dessas não-palavras, um tato que possa reter os cantos sem escrúpulos, aqueles que acreditam poder fazer com que tudo fale a nosso respeito. Esse equilíbrio entre audácia e escrúpulo é provido pela poesia, ou melhor, por alguns poemas. Eles não se apressam em fazer com que os pássaros falem – nem mesmo com que cantem! Eles dizem menos, e eles dizem mais – eles dizem pior...
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“Não procuramos signos, mas significantes, ou seja, signos de não se sabe o quê¹⁵”. A obra de Dominique Meens, desde a Ornitologia do caminhante (1996-2005) até Minhas línguas ocelas (2016) é completamente voltada para um esforço de escutar o que Lacan havia chamado de “o significante na natureza”, para um esforço de discernir, no mundo sonoro aberto pelos pássaros, não sinais mas sim verdadeiras línguas; línguas que necessitam de muita atenção e seriedade – mas definitivamente também de audácia – para serem escutadas e traduzidas. (Os Zozlos de Jacques Demarcq diz isso com a mesma força, mas por meios formais completamente diferentes: “Escrever é traduzir em língua o inarticulado do real; e o contrário: das palavras voltar ao ruído.¹⁶”).
A Ornitologia do caminhante ria da rapidez da nossa escuta, das nossas alegorias, do que fazemos esses cantos dizerem. Mas se os pássaros não se importam com o canto que pressupomos a eles, isso não significa que devemos recuar na nossa convicção de que ali há sentido, pelo contrário; eles fazem outra coisa, mais considerável, mais gramatical, que será chamada por Dominique Meens de “conjugar”, no termo provisório de sua pesquisa. “Caroços, amontoados, nódulos, se formam, perceptíveis, onde tal espécie se reconhecerá; de que tal outra... se apropriará. [...] Nosso melro, que não se apropria de nada se se mantém limpo no meio de tudo que ele é, conjuga. Não se pode dizer, portanto, que ali não haja um verbo.” (p. 302). Jean-Christophe Bailly dizia alguma coisa parecida em O partido dos animais: os bichos “conjugam os verbos em silêncio¹⁷”.
Sim, eles conjugam, eles declinam mais do que declaram; e em silêncio. É por isso que para traduzi-los precisamos de operações gramaticais, mais do que de substantivos, pois a questão não é (apenas) nomeá-los, não é convocá-los de forma adâmica para responder “presente” à chamada; mas sim deixá-los enunciar suas ideias, enunciar suas “como se frases”, ramos e fios de sentidos: “A carriça pronuncia efetivamente uma frase, algo como um provérbio, uma sentença. É o ritmo e a acentuação que sugerem essas comparações, elas sublinham a audível autoridade da cantora.¹⁸” O canto, aqui, é recebido como uma frase, uma expressão na língua, e não uma melodia. Mas “o om¹⁹ impede o significante na natureza. O om barra todas essas disposições para significar. O om só deseja o signo: ele caça.” (p. 143).
Todo o trabalho de Dominique Meens se esforça em descrever essas línguas ocelas, esforço admirável, delirante, incansável, que sonha in fine com melhores tomadas do mundo – desse mundo do qual estamos apartados, com o qual agimos como se praticamente não lhe déssemos mais importância.
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O essencial para mim: o fato que isso aconteça em “manobras de linguagem”, como dizia Valéry. Em outras palavras, um poeta engaja, na escuta, sua língua (nossas línguas, “perfeitas porque muitas”) e sua consciência sintática (“Minhas tentativas de escrever conforme o tordo são francês²º”). Ele usa língua, usa a outra língua, usa a “língua viva”. Não há pretensão em fazer a natureza falar, em simular para ela uma voz, há menos, e mais: é a decisão de escutar sua não-fala, a audácia de reconhecer ali uma gramática, o desejo de traduzi-la, e mesmo de acompanhá-la: escrever “conforme o tordo”. Por exemplo, ao destacar que a carriça pronuncia uma frase, “como um provérbio, uma sentença”.
Escutar, traduzir, devemos fazê-lo desde o nosso lugar de fala e de existência, na consciência de um engajamento recíproco entre os enunciados de pássaros e os nossos. Algo que, justamente, uma semiótica não faz; ela não engaja sua fala em sua escuta, a qual não tem qualquer espécie de canto, qualquer espécie de resposta – de responso, diria a música; não importa, ela faz outra coisa, essencial; mas sobre o que nos dizem os cantos e os não-cantos dos pássaros, ela diz muito pouco. “As línguas ocelas só podem ser ouvidas, escutadas, estudadas a partir de nossas línguas tão maternas. O erudito se absterá. O erudito se absteria se não houvesse para retê-lo todo o aparato que rebate a construção sonora sobre o bioacústico.²¹”
Ao dizer isso eu não oponho – que vergonha! – espírito de finesse a espírito de geometria, calor do poema a secura da ciência. Não, estou tentando falar (pelo menos uma vez, pois se o poema fosse tratado como um saber, um sério saber sobre o presente, isso já seria sabido) da justeza, para essa ampliação da nossa escuta das coisas da natureza, do esforço poético, da justeza dessa escuta em sintaxe do significante na natureza.
Insisto nisso: não se trata de saber que mensagens os animais trocam entre si, como se comunicam, como significam alguma coisa uns aos outros. Trata-se de escutar e de traduzir. “Sair da ranhura humana”, dizia Ponge, mas a partir de nossa forma de vida. O que se dizem os pássaros, nunca saberemos. No máximo nos aproximaremos disso, nós o seguiremos se formos capazes, mas nos aproximaremos e seguiremos a partir de nosso próprio lugar de sentido e de linguagem. O que o canto deles (a maneira de seu canto) nos diz, o que o não-canto deles (a ausência de seu canto) também nos diz, o que seu modo de ser e de desaparecer nos diz: é disso que podemos nos pôr à escuta, e é isso que devemos seguir, como um pensamento – exatamente como um pensamento pelo qual teríamos que responder. Os poetas, aqui, estão na linha de frente; seu modo de atenção, sua audácia, seu esforço sintático – tudo o que eles são capazes de escutar sem fazer parecer que esse algo “fale”, que fale como nós e para nós – demonstram sua seriedade.
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Um pássaro, portanto, não fala, nem mesmo canta. E contudo ele sabe muito, tem coisas a dizer, nos dirige pensamentos, e pode até nos incitar, nos desafiar.
Dominique Meens, por exemplo, escutou um tordo lhe dizer “mas”, lhe dizer até mesmo “não”. Ele se lembra do dia em que, jovem soldado na Alemanha, escutou o canto do tordo. E foi com esse canto que ele soube no que estava pensando: “Esse ‘mas’ proposto pelo tordo, pelo canto do tordo, esse ‘mas’ repetido derivando em seus valores.” Soube ainda tirar do canto lições lógicas e práticas: “Cheguei imediatamente à conclusão moral de nosso engajamento recíproco – ele cantava: não vou viver por muito tempo nessas condições que permitiram que nos cruzássemos. Aquilo não era vida. Eu poderia muito bem desejar uma vida de tordo.” O tordo dizia “mas” então, dizia a ele “mas”; o que ele cantava dizia “mas”; o que ele era dizia “mas”. Sua maneira de ser, de voar, de soar, torna-se uma frase no livro: uma frase-vida oposta à nossa – um protesto, uma réplica: mas quem o obriga a viver assim? Foi isso que o tordo demonstrou e que sua escuta amarrava: é preciso viver de outro modo.
Assim um pássaro responde, dizendo suas razões mesmo que nada lhe tivéssemos perguntado. Mais uma vez, não é que ele fale; mas nem por isso ele deixa de pensar. Ele responde pelo ar que o sustenta ou que não o sustenta mais; ele responde por nós e por aquilo que acontece conosco. Ele responde particularmente a essa questão indelével dos dias de hoje: por que viver de outra maneira? “Porque o pássaro” (como o diz de forma decisiva Fabienne Raphoz, a quem volto como a uma fonte absolutamente clara). Por que lutar? Porque o pássaro. Por que procurar viver de outra forma? Porque o pássaro. Porque os pássaros morrem e porque os pássaros cantam, se calam, não-cantam nosso mundo devastado. (Talvez o movimento mais nítido da poesia atual resida, aliás, na politização das coisas líricas. É por meio delas, das coisas de Ovídio – dos pássaros, costas, rios, florestas, pedras, cabanas e suas metamorfoses –, que o mundo social chega ao poema hoje: em Jean-Marie Gleize, Olivier Cadiot, Michel Deguy, Jean-Patrice Courtois...)
Receber dos pássaros enunciados que obrigam a isso, é o que ocorre também com o narrador do livro profundo e cômico de Victor Pouchet, Por que os pássaros morrem²². Pássaros caem do céu na Normandia, no vilarejo onde ele cresceu, e dessas chuvas de pássaros mortos ele precisa seguir a pista, o que faz num cruzeiro subindo o Sena, nos livros, nas suas anotações, num devaneio sobre os futuros entreabertos e os passados desenterrados. Chovem pássaros mortos, podemos muito bem almejar um destino de marinheiro, ou de naturalista. Chovem pássaros mortos, a vida desse jovem deve mudar, ficar mais leve, mais pesada, recomeçar, ainda que apenas subindo a corrente do rio para reencontrar orlas de infância. Chovem pássaros mortos como se chovesse sentido, advertências, dos Deuses. – E a linha que se abre aqui é desenvolvida, por exemplo, em O chasco curdo, obra de Jean Rolin que segue a trilha de um pássaro perdido do bando em Auvergne e examina seu presságio.
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A virtude de um poema aqui: misturar as suas próprias frases às frases dos pássaros; afirmar que os pássaros fazem frases – que não é que eles cantem ou se comuniquem, mas que conjugam, e enunciam, e coordenam, e pontuam, emitindo pensamentos...; tentar ligações com esses pensamentos (com essas vidas que são exatamente como pensamentos a escutar). Colocar os pássaros como sujeitos possíveis de nossas frases, saber que enunciados recebemos deles, tentar relações, essas relações que a sintaxe justamente declina e realiza: dessas frases ocelas, tirar conclusões, respostas, silêncios, pausas... E isso não é pouco, já que é verdade que precisamos, antes de mais nada, reconstruir a escuta das coisas da natureza neste mundo devastado.
A propósito: isso supõe a defesa (como Deguy, Fourcade, Hocquard, Cadiot...) de uma poesia da sintaxe e não da “presença”; uma poesia em que o real venha em frases e não em substantivos. Pois a sintaxe é um pensamento e uma prática das relações, no e com o mundo. E são essas relações no e com o mundo que hoje são, para todos, a grande questão.
- Fico, na verdade, perplexa pela pouca atenção que os pensamentos contemporâneos dedicam à poesia quando, contudo, eles discutem questões de língua, de escuta e de tradução, se perguntando como ouvir os animais, as árvores, os rios, que linguagem reconhecer neles, que pensamento lhes atribuir (ou melhor, constatar), com que alma honrá-los. É pelo poema que se enunciará o canto desse parlamento estendido que nossa época demanda, um parlamento estendido aos seres viventes de todos os tipos, e aos não-viventes, e aos seres que ainda não sabemos nomear. Um canto ao mesmo tempo imaginativo e paciente, cheio de audácia e de tato, em combate às categorizações rápidas demais e à pretensão de fazer com que tudo fale a nosso respeito.
Texto original encontrado em:
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Ibid., p. 25.
ROUZEAU, Valérie. Sens averse (répétitions). Paris, La Table ronde, 2018, p. 12.
KOHN, Eduardo. Comment pensent les forêts. Vers une anthropologie au-delà de l’humain. Bruxelles, Zones sensibles, 2017.
MEENS, Dominique. Mes langues ocelles, Paris, P.O.L., 2016, p. 32.
DEMARCQ, Jacques. Les Zozlos. Caen, Éditions Nous, 2008, p.1.
BAILLY, Jean-Christophe. Le parti pris des animaux. Paris, Bourgois, 2013.
MEENS, Dominique. Mes langues ocelles, op. cit., p. 40.
Mantra monossilábico no hinduísmo e budismo, pronunciado no início de toda recitação sagrada. [N.T.]
MEENS, Dominique. Mes langues ocelles, p. 238.
Ibid., p. 224.
V. Pouchet, Pourquoi les oiseaux meurent. Le Bouscat, Éditions Finitude, 2017.
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