Da coletânea de "cartas às jovens poetisas"¹
Tradução de Renata Villon
Lacoste, fim de agosto de 2020
Querida Sophie,
Me perdoe por não ter respondido às suas duas últimas cartas, mas parece que aqui a relação com o tempo se dilui, assim como toda noite o gelo se dilui em nossos copos. No entanto as noites ainda estão aqui, e o vento que atravessa as árvores. Hoje está de manhã. Fingimos que a vida é composta de manhãs, então vou aproveitar para responder à série de questões que você me propôs. Vou respondê-las em desordem ou aos trancos e barrancos, pois tanto a desordem quanto os trancos acabam por se afinar completamente com o espírito da velha mulher que me tornei.
Comecemos por deixar para lá essa história de preocupação com os leitores: sem parceiros, os golfinhos sarram contra um coral. Então, no que diz respeito à ausência de parceiro-leitor, a gente sempre pode achar soluções. Até porque nada é pior do que o banho morno da empatia que na realidade trabalha pelas nossas costas para a morte da experiência. Mas de que experiência?
Para andar rápido: nos atiramos na direção do abismo e isso graças a uma série de progressos destrutivos que acumulam catástrofes. Agora o tratamento criminoso contra a natureza pela civilização ocidental parece um fato consumado.
É aqui que estamos: você, a jovem poetisa, e eu, que hoje sou velha, nos encontramos confrontadas, cada uma de forma diferente, com novas práticas performativas e tecnológicas que a princípio deveriam, na nossa arte, nos fornecer novos meios de resistir aos paradigmas dominantes. Alguns falam até em “remediações biotecnológicas”.
As redes de publicação alternativas podem, como você diz, se tornar ferramentas de resistência; mas não se esqueça nas mãos de quem elas estão (Google, Facebook, Apple, Amazon)...
Isso levanta alguns problemas, pois devemos manter em mente que o capitalismo só tolera aquilo que pode usar, e quando não consegue mais explorar a arte, a indústria cultural nos faz perder o gosto por ela. Porém, não temos escolha. Ficar parado ou se mexer. A solidão devasta, a companhia oprime… E Genet, que era perito em deslocamentos, tratou de assinalar: “O palco é um local vizinho da morte”.
Ainda não terminamos de mensurar o efeito retardado sobre as mutações do gênero poesia. Mas afinal, em Crime e castigo não havia nenhum detetive para conduzir a investigação, e tendo em vista o sofá sobre o qual a poesia havia assentado sua bunda, ela só podia ser assassinada.
“O ódio da poesia” do qual você fala fez parte do dispositivo poético dos poetas. Faz tempo que ele dormita nas caixas de ferramentas deles. Mas depois de tê-la declarado “inadmissível”, “intolerável”, por que não simplesmente considerá-la “insustentável”. E, exatamente por essa razão, sustentá-la. Precisaríamos de tempo para produzir uma única observação simples e verdadeira a respeito do fato de ela prosseguir praticamente imparável apesar dos golpes recebidos juntamente com esse “horrível hálito fresco” que ela ainda hoje continua a exalar em alguns. Talvez porque ela avance costurada à memória da nossa língua. Em todo caso, é nisso que por muito tempo desejei crer.
Isso deveria esclarecer o que parece tê-la perturbado quando escrevi “macaca, eu macaqueio”². Mas foi exatamente isso que não parei de fazer. Simular, retirar, desmontar, remontar. Num corpo de macaca, se alinhar com macaco. Estamos nisso. É inútil ter feito muitos estudos literários para perceber que a poesia francesa é uma das mais misóginas que existem. A língua não é sexuada. É requisitado a essas damas que não coloquem seu útero na mesa. Isso eu entendi muito rápido.
“Coletiva poesia onde a aventura da minha vida consiste em não ser um intruso”, declara o impecável Dominique Fourcade num livro cuja leitura recomendo. Só acontece que parece haver aí uma considerável diferença musical-jurídica entre intruso e intrusA. Um beijo de 8 segundos libera 80 milhões de bactérias. E por trás de todo coletivo muitas vezes dormita um chefe. Raramente uma chef-a. Sentado, de pé ou deitado, masculino, feminino ou neutro, nenhum corpo escapa à vigilância, nem à história que o precede. Acontece que você, assim como eu, pertence a uma categoria: poetisa. Que não está longe de putisa [poétasse]³.
Tem o que a primavera faz com as cerejas, o verão com os abricós, o outono com os cogumelos. Já a polícia dos corpos não tem estação. Confrontados com uma coletiva branquitude, sob a vara dominante de um heterocentrismo, quantos corpos faltosos no bidê poético?
“Quando o poema é escrito, o poeta está morto”. Isso é claro. E a poetisa? Aquela que é atravessada pelo aborto intelectual de séculos inteiros de mulheres artistas e pelo infanticídio de centenas de obras de poetisas, com o que ela escreve? Que corpos fantasmas? Onde lhe dói? Como escapar dessa memória, dessa limpeza pelo vazio?
“Tu t’entêtes à tout tenter”⁴. Trava-língua ou quebra-língua, é como um lapso. A liquidação das maiúsculas levará tempo. Que ferida não é de guerra e vinda da sociedade como um todo? Que língua? Para muitos se trata de sobreviver ao sofrimento, ao trabalho, aos maus-tratos.
Historicamente, a mulher de má índole era a bruxa e a puta.
Tive a felicidade de pertencer a uma geração que pôde descobrir revistas chamadas “Sorcières” ou “Le torchon brûle”⁵. Outro século, outras batalhas. Também pude observar que no domínio do “coletivo poético” as poetisas mais amadas eram as suicidas ou as enfurnadas num mastaba por guardiões próximos que eram geralmente machos.
No fim das contas, poesia patriarcal e vertical, regada de manifestos comicamente fálicos. Releiam então Mina Loy!
A nós a desordem, serpentes do coração, insultos marginalescos e poemas extensos...
Considerando um encadeamento de frases sem sujeito talvez eu deva escrever uma ode sobre algumas de nós como velhas decrépitas, bruxas sem cabelos… Elas avançam com seus vestidos repletos de fezes, cheias de esperança: é que a gama étnica oferecida nos bordéis aumentou nos últimos anos, consideravelmente ajudada pelo impacto dos temas racistas do pornô reivindicado por todos os clientes. Por que o que alimenta a economia do sexo não viria influenciar a economia poética?
Mas eu estava brincando…
Uma mulher prevenida vale por duas… Não tenho tanta certeza… Não tenho tanta certeza…
É que você parece pedir conselhos impossíveis.
Em todo caso, o que sei é que uma poetisa não deve ser um poeta deteriorado.
E aqui está você, enfim, também embarcada nesse velho tonel. No gênero tentativa de ensaio de transformação da perda, eu poderia lhe pedir para não escutar nada disso. Para seguir apenas a sua cabeça. A bordo desta embarcação, nunca se é veemente o bastante e nunca se é agressiva o bastante.
Releia o implacável Artaud, que após ter dito que “toda a escrita não passa de porcaria” elucida, por outro lado: “Creio que toda escrita aceitável é poesia”.
E talvez, afinal, essa prática insustentável tenha algo a ver com o simples fato de se opor.
No século passado, nosso velho amigo Nanni Balestrini não afirmava que “a poesia é uma oposição”?
É certamente por isso que, sem cessar, é preciso fazer outra.
Com essa bela fórmula, envio-lhe um beijo, querida Sophie, e peço que se cuide; não será simples viver a temporada que se inicia.
No que me diz respeito, vou me servir uma taça que beberei a todas as pequenas poetisas por vir.
Liliane Giraudon
In: OLIVIER, Aurélie (org.). Lettres aux jeunes poétesses. Paris: L’Arche, 2021.
Liliane Giraudon é uma poeta francesa nascida em 1946. Seu trabalho de escrita e arte transita por vários gêneros, entre eles poemas, prosas, teatros, desenhos e colagens. Seu livro mais recente é le travail de la viande, publicado em 2019 pela editora P.O.L, assim como a maior parte de seu trabalho. Vive em Marseille atualmente e é também ativa na luta feminista. Possui um site onde alguns de seus trabalhos são publicados, além de possuir entrevistas concedidas e informações biográfica; ele pode ser acessado em <http://www.lilianegiraudon.com/>.
No francês, assim como no português, existe a escolha entre as palavras “poète” (poeta), usada somo substantivo de dois gêneros, e “poétesse” (poetisa). Tanto “poétesse” quanto “poetisa” possuem uma forte marca do feminino, e seu uso vem geralmente acompanhado de uma desvalorização das mulheres escritoras em seus ofícios. Há, no entanto, a tentativa de uma reapropriação do feminino e de apagamento da degradação que até então acompanha essas palavras. Parece ser por esse motivo que Liliane Giraudon utiliza constantemente poétesse ao invés de poète, possuindo, inclusive, um livro sob o título La poétesse (2009), que parece tratar exatamente dessa diferença. Por isso no presente artigo optamos por manter a escolha de Giraudon e, ocasionalmente, utilizar “poetisa” para se referir a mulheres que escrevem poesia.
No original, “guenon, je singe”. A palavra “guenon” é uma forma pejorativa de se referir a mulheres e que também se refere ao feminino de macaco; já “singe”, que também significa “símio”, é a conjugação do verbo “singer”, que significa imitar ou simular.
Palavra que é uma junção de poétesse (poetisa) e pétasse, que é uma forma de se referir a mulheres consideradas vulgares e geralmente associada à prostituição.
Trava-línguas francês que poderia ser traduzido como “tu teima em tentar tudo”.
Cujas traduções seriam “Bruxas” e “Pano de prato em chamas”.
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