Ryoko Sekiguchi é uma autora, poeta e tradutora de origem japonesa, cuja trajetória abrange tanto o universo da culinária como o das letras. Nascida em Tóquio no ano de 1970, viveu no Japão até 1997, quando se mudou para Paris. Fluente em francês e japonês, seus trabalhos literários são concebidos em ambas as línguas. Inclusive, uma característica da sua escrita é a prática da autotradução. Quando Sekiguchi escreve um livro em francês, por exemplo, posteriormente costuma traduzi-lo para o japonês, e vice-versa. Essa dinâmica confere às suas obras uma riqueza intercultural e nuances que se revelam de maneiras distintas em cada idioma.
A relação profunda da autora com a gastronomia se manifesta como um fio condutor em grande parte de sua produção artística. A culinária não apenas serve como tema principal, sendo comentados os modos de fazer e consumir comida, mas também como um elo simbólico entre as culturas japonesa e francesa. Além disso, para a autora, a experiência da memória está intrinsecamente ligada à experiência corporal. Assim, os elementos sensoriais, tais como os gostos, cheiros e sons, são tidos como ferramentas para evocar o passado, e trazê-lo à tona, em uma forma de revivê-lo no presente.
Seu livro La Voix Sombre, publicado em 2015, é um trabalho que foge da temática gastronômica. Nele, a autora faz um compilado de reflexões acerca da morte, do luto, e da maneira como a voz de alguém que já se foi permanece como uma extensão palpável de sua presença. O texto surge a partir de uma experiência pessoal da autora, que durante sua estada na França, recebe a notícia do falecimento de seu avô no Japão. Ela, que guardava algumas mensagens de voz dele, registradas pelo telefone, tenta acessá-las novamente. No entanto, percebe que as mensagens não existem mais, foram apagadas em algum momento. Isso representa uma perda dupla para Sekiguchi, tanto do avô em si, como da voz registrada dele, que seria uma forma de combater sua ausência.
"Houve um tempo em que guardei certas mensagens do meu avô, que me telefonava de Tóquio, no correio de voz do meu telefone fixo parisiense. Como a capacidade de gravação era limitada, eu fazia regularmente uma seleção para guardar apenas as mensagens mais preciosas. As mensagens telefónicas não poderiam ser mais privadas, porque elas carregam um endereçamento pessoal, onde os nomes do remetente e do destinatário são frequentemente pronunciados. Eu guardava essas mensagens, e a sua voz que se dirigia a mim. Mas quando, após a sua partida definitiva, eu quis voltar a ouvir as suas mensagens como um último recurso, todas elas tinham desaparecido". (p. 22)
Entre as reflexões apresentadas no livro, está a de que a voz, mais do que um som, é uma manifestação tangível da presença do corpo. É como um alongamento do corpo, expresso através das ondas sonoras. O corpo é o aparelho da voz, e a voz, por sua vez, é uma extensão concreta dele. Por meio de dispositivos, podemos gravar as vozes, para que elas possam continuar soando mesmo depois que a fonte original se cala. Outras vezes, a voz reside apenas na memória, registrada pelo corpo. No entanto, a voz que não é documentada, que está apenas na memória, é efêmera e se perde quando o corpo se vai, sendo incapaz de ser reproduzida novamente.
"Esta voz existe como o traço de uma pessoa, a prova da sua existência, trazida para o presente pra sempre?
Sim, como todos os traços de uma pessoa.
É claro que a voz não é a pessoa, pois ela não voltará mais.
Mas a voz também não é uma parte da pessoa, de quem pegaríamos migalhas de presente.
Ela é a encarnação do "presente" da pessoa". (p. 06)
Ainda segundo Sekiguchi, a ondas sonoras são uma projeção, assemelhando-se a hologramas. E essas vozes, quando não mais emitidas pelo corpo, mas reproduzidas pela memória ou por aparelhos, são como fantasmas. Da mesma forma que os fantasmas perturbam a linearidade temporal, a voz também pode nos transportar ao passado ou trazer o passado até o presente, confundindo as fronteiras do tempo, manifestando-se, assim, como uma presença disruptiva da temporalidade. Assim, a presença da voz é uma aparição que transcende os limites do tempo, conectando-nos ao que já existiu. Mesmo com o desaparecimento do corpo, na morte, ela tem o poder de resgatar a presença de alguém. Dessa maneira, a voz registrada representa uma forma de permanência neste mundo efêmero, permitindo que a pessoa continue a existir mesmo quando ela já se foi.
"O fantasma da voz me acaricia.
Na ausência, no desaparecimento, que canta e cadencia o fantasma das ondas.
A voz treme.
Até mesmo sussurra.
Ela permanecerá presente, aparecerá mesmo depois da minha morte, mesmo depois da morte de todos que a conheceram, como uma múmia.
A voz está sempre no presente. Ela não conhece a morte.
Contanto que a voz exista.
O ressurgimento parcial e cruel de uma pessoa que já não está mais.
De sua vida restará uma onda". (p. 43, 44)
Essa conexão entre as experiências passadas e sua influência contínua no presente é similar ao registro que fazemos das vozes das pessoas em nossas vidas. As vozes dos outros deixam suas marcas, passando a fazer parte de nós, assim como nossa própria voz. Não as gravamos apenas na memória, mas também em nosso corpo, assim como acontece com uma cicatriz. Assim como a cicatriz traz consigo a lembrança da dor da ferida que a originou, a voz também pode ser vista como uma marca dos indivíduos que cruzam nosso caminho. A sensação da dor persiste mesmo que o tempo tenha passado, e a voz ecoa como um testemunho vivo das pessoas. A voz dos outros ressoa em nós como cicatrizes. Elas não são o outro ou parte do outro. São cicatrizes nossas, que guardam em si a presença do outro.
Em nossos tímpanos são gravadas as vozes de certas pessoas de quem jamais gostaríamos de nos separar. Da mesma maneira que um epitáfio ou uma tatuagem, elas estão gravadas em nosso corpo.
Gravar é a palavra certa. Certas vozes não nos deixam, fazem parte de nós, como certos olhares que nos atravessaram. Não as conservamos simplesmente apenas na "memória", nós as conservamos em nosso corpo, no calor do nosso corpo, embora eu não saiba exatamente onde. (p. 22, 23)
A dor da perda e a experiência da morte em um contexto de exílio, distante da terra natal, são outros temas explorados no livro. A morte transforma tudo; o mundo, sem esses corpos e vozes, já não é mais o mesmo, nem o indivíduo que vivencia a perda. Quando uma pessoa morre, a noção de desaparecimento é uma sensação constante, que nos faz reviver a perda, pelo contraste entre a presença que existia e a atual ausência, que se perpetua. Para Sekiguchi, a voz representa uma forma de enfrentar o luto e lidar com a perda de um corpo que agora existe apenas no passado. É uma maneira de evitar o esquecimento e manter viva a memória daqueles que partiram. Diante dessa reflexão, a autora aconselha os leitores a registrarem a voz daqueles que amam, transcendendo as limitações temporais e mantendo-os presentes em nossas vidas.
"Neste mundo onde tudo se precipita para o passado, a voz é a única coisa que vem de nós capaz de permanecer milagrosamente no lugar singular onde ela se encontra". (p. 19)
A problemática temporal em relação à voz é complexa, pois embora ela esteja sempre no presente, esse tempo presente não é linear. O presente linear está em constante renovação, nunca permanecendo o mesmo e sempre virando passado. A voz existe em um tempo presente diferente, que se constitui em algo desorganizado, uma amálgama de tempos, onde não é possível discernir ou sequenciar claramente. Ademais, Sekiguchi acrescenta que a verdadeira presença da voz só é notada de fato quando ela se separa do corpo da pessoa, depois da morte. Enquanto uma pessoa ainda está viva, a presença da voz se integra à presença da própria pessoa, mas quando elas são separadas, a voz revela sua presença singular.
"Quanto mais a ouço, mais me sinto tomada pela perturbação temporal. A voz permanece no tempo presente, mas este presente, que reúne momentos que pertencem a diferentes momentos no tempo, não é o presente dos vivos, instante constantemente renovado. O presente desta voz é um presente amalgamado, um amontoado desorganizado, que por natureza só sabe estar em desordem. É um presente que não existe no mundo real. No entanto, é bem no mundo real que eu escuto agora esta voz, que é este amálgama de presente solidificado". (p. 25, 26)
Seguindo este raciocínio, a autora conclui que a voz registrada se encontra no presente, mas se desenrola no campo do concluído. É algo que já aconteceu, mas que se perpetua, não se inscrevendo numa temporalidade linear, mas numa dupla temporalidade: a do corpo e a da voz em si. Uma parte avança no tempo, e nela o presente é feito de instantes passados. A outra permanece sempre no presente. Assim, as fronteiras do tempo se desfazem.
"A voz registrada está no presente, mas ela se passa no campo do "realizado". Ela já foi concretizada, mas isso não a impede de permanecer no "presente".
O realizado não é o passado, é por isso que a voz acontece numa outra temporalidade. Ela não está inscrita na temporalidade linear; ela possui uma dupla natureza temporal.
Na verdade, não há nada de incoerente nisto: o que está realizado pode permanecer no território da presença". (p. 27)
Ficou ótimo!
📢🎤🔊📣
Adorei o texto, Luísa! Parabéns!