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A moça sem mãos — Liliane Giraudon

Atualizado: 21 de mar. de 2022

Tradução de Renata Villon


Se cremos nas narrativas folclóricas, ser privado de mãos é uma desgraça que diz respeito apenas às heroínas.

Será que a desgraça é um espaço?

Que vazio ela ocupa?

A moça traça ao seu redor um círculo de giz mas seu pai lhe corta as mãos.

Que espaço ocupa o círculo das mãos?

No que se transformam os pulsos vazios?


Ela faz com que lhe amarrem às costas os braços mutilados e foge para longe de casa.

Será que longe de sua casa cobre um espaço longínquo?

Um espaço deixado vazio?


Pode-se dizer que se trata de uma relação com o espaço.

Consequentemente, com o vazio.


O espaço está por todo lado.

O espaço das estruturas flutuantes não é o espaço das mãos cortadas.


Cortar as mãos, será possível?

As carnes que envolvem o pulso ocupam um espaço que pode ser fatiado pela lâmina?


E os ossos? Será que ocupam o espaço da serra ou o espaço do machado?


Podemos retornar ao conto.

Podemos nos interrogar sobre o espaço do conto.

Nos mapas de estado-maior o conto ocupa um espaço vazio onde circulam palavras.

As palavras flutuam, em estado de suspensão.

As cesuras na história, tantos assassinatos ao vivo.

Panfleto tépido ou exame, o que ocorreu, ocorreu.


O moleiro do conto, embora miserável, ainda possuía seu moinho e uma grande macieira.

Tanto o moinho quanto a macieira se encontravam no espaço.

Um vazio circulava entre as palavras “macieira” e “moinho”.

Na floresta onde vai buscar madeira, o moleiro encontra um homem.

“Posso te deixar rico, se me der o que tem atrás do teu moinho”.


Esse homem é o diabo.

O moleiro ignora esse espaço de verdade e sonhando com o vazio que envolve a macieira assina o contrato.

“Em três anos virei e levarei o que me pertence”, diz o diabo antes de se afastar.


Será que o espaço do diabo permite que ele se afaste?


De volta à sua casa o moleiro descobre que ficou rico.

O espaço ocupado pela macieira, se fosse menos vasto, será que teria mudado o conto?


O vazio que separava cada galho da macieira teria a cor do céu?


“Infelizmente, meu homem”, lamentou a mulher do moleiro, “esse homem é o diabo e não era da macieira que se tratava, mas sim da nossa filha que estava atrás do moinho!”


A filha do moleiro estava no mesmo espaço que a macieira.

Será que o espaço dos frutos da macieira tinha algo a ver com o espaço dos olhos da moça?

O vazio desenhado por entre os braços estendidos da moça ocuparia um espaço igual ao dos galhos mais baixos da macieira?


Apenas o espaço do conto e as palavras que ali se encontram suspensas podem nos esclarecer.


Transcorrido o espaço dos três anos, a moça se lavou e se purificou inteira e depois traçou ao seu redor um círculo de giz.

O diabo apareceu mas não conseguiu se aproximar dela.

O vazio entre o círculo e a moça era um espaço proibido para o diabo.


O corpo da moça, centímetro por centímetro, ocupava um bloco de pureza.


“Prive-a de água para que ela não possa se lavar!”


Com medo, o moleiro obedece.

O medo lançaria um vazio na alma daquele que o sente?

No dia seguinte o diabo retornou mas a jovem moça havia chorado tanto no espaço das suas mãos que elas estavam puras.


Ainda não podendo se aproximar dela, louco de raiva e ameaçador ele se dirigiu ao moleiro.

“Corte as mãos dela, senão não posso fazer nada! Se não fizer isso é você quem pertencerá a mim e te levarei!”


O moleiro ficou com medo e prometeu obedecer.


“Minha filha, se eu não cortar as suas duas mãos o diabo me levará… Me ajude em minha aflição e me perdoe pelo mal que estou te fazendo”

— “Querido pai”, ela respondeu, “faça o que quiser comigo, sou tua filha”.


Então ela apresentou as duas mãos e deixou que fossem cortadas.


O espaço das suas mãos se encontrou decepado e o vazio entrou em seu corpo.


Quando o diabo retornou pela terceira vez, ela havia chorado tanto e durante tanto tempo sobre os pulsos decepados que eles estavam perfeitamente puros.

O diabo teve de renunciar, havendo perdido todo o direito sobre ela.

No conto, o espaço das lágrimas escorre sobre a heroína e inunda o conto.


O moleiro então diz à filha: “Graças a você ganhei bens tão valiosos que ao longo de sua vida te manterei no luxo mais exorbitante”. Ela respondeu: “Eu não poderia ficar aqui. Quero ir embora; pessoas caridosas me darão o necessário”.


Ela fez com que lhe atassem às costas os braços mutilados e partiu ao nascer do sol.


Andou o dia inteiro sem parar até a noite.

Qual o espaço de um dia como esse?

E o espaço dessa noite?

Qual a medida do espaço do conto?

Onde se encontra o espaço do vazio ocupado pela mãe?

E o pai? Que espaço deverá atravessar para escapar do tempo?

E o remorso? Que traço deixará sua mordida no corpo do velho pai?


Página abolição memória: um trabalho em tempo integral.


Essas palavras lançadas no vazio e retomadas muito tempo depois se juntarão às lágrimas da moça de mãos cortadas?

Lhe darão seu sorriso? Sua força para agir?

Onde está a moça?

Em que espaço de que poema pode ela hoje traçar signos?


NOTA

O que conta o conto?

Por muito tempo guardei numa camisa verde esse conto reescrito após uma performance no espaço com Roberto Comici (Galeria où, Marseille, 2010).

Não apreendendo muito do que se passava nele… essa memória truncada de um conto com a moça de mãos cortadas (longínqua leitura infantil), cuja lembrança eu havia retranscrito numa espécie de sonho acordado e sob o pretexto de uma reflexão acerca do espaço.

Em 2018, quase exatamente 8 anos mais tarde, com a brutalidade da morte do meu editor Paul Otchakovsky-Laurens, me dei conta de que essa moça de mãos cortadas e que pediu que lhe atassem os braços às costas era eu. Exceto que a moça havia se tornado quase uma velha e o espaço a enfrentar não era um caminho de terra e nem uma floresta, mas o de um livro a terminar… Talvez tenha sido com essa estranha sensação de “mãos cortadas” ao longo dos dias que sucederam a terrível notícia que, de maneira intempestiva, o conto tentou me esclarecer.


In: Giraudon, Liliane. le travail de la viande. pp. 11-17. Paris: P.O.L, 2019.



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